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domingo, 26 de abril de 2009

o assombro sempre é maior que a assombração


o Deus quântico criou o universo, mas não o pode operar



Para o mundo da física, as teorias quânticas descrevem uma série de fenômenos bizarros, como partículas que desaparecem aqui e surgem acolá, ou que se comportam como onda e como partícula a depender da situação, “coisas” que são e não são ao mesmo tempo, etc.; já para a metafísica, as conseqüências são muito mais sérias: um suposto Demiurgo quântico até poderia ter criado o universo, mas não possuiria nenhum controle sobre a sua criatura.

A realidade é um devir contínuo ― como já tinha notado Heráclito ―, e um devir contínuo é um vir-a-ser-alguma-coisa; o que vem a ser, e como se determina esse vir-a-ser-alguma-coisa, é onde a porca torce a primeira espiral do rabo: ninguém pode saber com certeza o que virá a seguir, apenas medimos possibilidades disto ou daquilo acontecer. A cada momento o universo precisa refazer suas apostas e, como disse Mallarmé, nenhum lance de dados pode abolir o acaso.

Nada nos garante que o sol vai nascer amanhã, disse Hume, sacudindo Kant de seu sono dogmático. O MUNDO É FUNDAMENTAL E ABSOLUTAMENTE LIVRE PARA FAZER O QUE QUISER NA PRÓXIMA JOGADA. Einstein se revoltou: Deus não joga dados. A possibilidade “zero” de um evento não significa, no mundo quântico, que ele não possa acontecer; o corolário disto confirma Machado de Assis: TUDO pode acontecer.

Stephen Hawking, em sua busca por uma teoria que unificasse todas as forças da física (Theory of Everything), percebeu que um tal conjunto de axiomas seria “completo”, isto é, não possuiria um fora que o balizasse, um metanível que atestasse sua verdade ou falsidade ― violando o Teorema de Gödel.

Nem Deus possui a Equação de Tudo.

terça-feira, 21 de abril de 2009

sábado, 11 de abril de 2009

o caubói ao entardecer



Um retrato moral resulta mais ambíguo ao poente do que com o sol a pino. Por contraditório que possa parecer, nisto reside a licença poética e um dos vértices do multifacetado “Gran Torino” (2008), filme mais recente de Clint Eastwood, anunciado como o seu último trabalho de ator. Uma luz oblíqua costuma guiar os atos finais dos caubóis de Hollywood: nos westerns, caracteristicamente, este é um combate singular que acontece nos confins da cidade, ao cair da tarde ― fica com vantagem no duelo aquele que se colocar de costas para o crepúsculo.

“Gran Torino”, porém, enfrenta corajosamente as vicissitudes do crepúsculo, em particular os inevitáveis acertos de contas com o passado, o presente e o futuro. O filme começa e termina na morte, sem com isto redundar em fechamento exegético, nem acentuar demasiadamente o registro do trabalho de luto. Embora se preste a balanços de vida, de carreira, de posições políticas (o cineasta é um redneck, republicano e patriota de quatro costados), o plano narrativo não aceita soluções apaziguadoras: Dirty Harry 6 está na pista daquelas perigosas sínteses de que falava Hegel.

Walt Kowalski, veterano da Guerra da Coréia, viúvo que mora afastado dos filhos e netos num subúrbio de Detroit, é o proprietário de um Ford Gran Torino, modelo 1972. O carro pré-crise mundial do petróleo lembra tristemente a arrogância perdida no centenário da Ford, paradigma da indústria do século XX; somos levados a perfilar homologias históricas e biográficas do personagem numa arquitetura da degradação: o declínio físico a se desdobrar no esgarçamento dos laços familiares, que se espelha na decadência urbana de Detroit, metonímia do combalido setor automobilístico norte-americano, símbolo, por sua vez, do outono da superpotência mundial.

Como os irmãos Cohen em “Onde os fracos não têm vez” (2007), o Eastwood-diretor experimenta com a mistura de gêneros, no caso, o faroeste com o drama de tribunal. Na sala de espera da consulta médica, Kowalski finalmente entende: é um imigrante entre imigrantes, maverick ajustado socialmente, ex-combatente que enfrenta agora o tribunal interior da doença, da velhice e da memória. Neste processo ele recusa tanto a mediação religiosa como a reflexão melancólica; se escolhe, uma vez mais, a via da ação, não está em busca de outro punhado de dólares, mas de conferir sentido(s) à sua trajetória.

A conquista do Oeste mítico encenou a conquista do mundo: no corte rápido da edição ideológica, saía o vingador solitário e entrava o marine. Passagem de bastão que John Rambo realizaria, no imaginário da América e do mundo; afinal, supremacia se faz com guerras e guerras se fazem ultrapassando fronteiras éticas. Os filmes de tribunal representam, assim, um segundo tempo dialético do bang-bang: no momento em que a conduta vai ser escrutinizada pela Lei é que ela atinge a letra, ganha estatuto legal, e portanto, social. Jean Genet dizia que era apenas um homem que roubava, depois de condenado, tornou-se um ladrão.

A América (do norte, bem entendido) se tornou o que é por acreditar nos princípios da Lei e da Civilização (ocidentais, bem entendido); a crise atual, ao atingir o núcleo duro do sistema, deixa de ser uma questão econômica e se torna também uma questão de modelo, de visão de mundo. Esta é a condição pós-moderna descrita por Lyotard, falindo os laços de nacionalidade, as fidelidades étnicas e clânicas, em suma, as “grandes narrativas”, confiamos que a imagem fragmentária do cinema realize a façanha integradora, o terceiro tempo em que a pulsão forja a representação. Monco não é Rambo, Eastwood não é Schwarzenegger, mas o Gran Torino do filme é “verde”, como os carros que Obama deseja para a América.

Kowalski tem dificuldades com a nova ordem, mas não vai contra o inevitável: não há mais dois exércitos marcando o mapa com vermelho e azul, o que temos é um território instável tomado por gangues. Os créditos descem com o caubói cavalgando sozinho rumo ao horizonte.

quinta-feira, 2 de abril de 2009