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domingo, 26 de dezembro de 2010

Conto de Natal

Todo mundo vê os tombos que levo, e todo mundo se apressa em apontar as cachaças que tomo. Uma terrivelmente simplificadora confusão entre meios e fins; a bebida, ao menos no meu caso, sempre foi um meio tolerado de apressar o fim ― um instrumento do inevitável entre tantos outros disponíveis, com um quê de indulgência romântica que convém ao estilo de vida que adotei. Para você, que está dentro da minha cabeça neste momento, não é difícil constatar que abomino a dor física e que receio mais ainda a vergonha de falhar no intento. Não há engano quanto a isto, faço meu cálculo de conseqüências: não quero legar às minhas filhas o peso de um suicida, embora me agradasse deixar esse estorvo à mãe delas. O veredicto social busca culpados para a autotanásia, no alcoolismo basta um.

De modo que fiquei restrito, por tibieza e hábito, a me aboletar em mesas e balcões de bar e esperar. Beber é um requinte da milenar arte da espera; já fumar, usar drogas, destruir carrões e motos, me dão a impressão de pressa, de uma certa displicência, algo como acelerar os ponteiros acrescentando peso aos mecanismos do carrilhão no relógio da vida. E se há uma coisa que detesto é a falta de critério dos tempos que correm, as pessoas saem a esmo imitando qualquer tendência para não ter que criar nada de intimamente seu. Nem mesmo a despedida. Comecei a beber de forma, digamos, mais competitiva, depois que a Yolanda se foi, deixando-me com as meninas; no ano em que a mais nova se formou, perdi meu último emprego registrado em carteira.

Não sei o que há comigo; por que continuo se já ultrapassei o préstimo?, o que é que ainda tenho que ver ou viver?. Já passei faz muito dos sessenta (meu pai, um avô e uma avó morreram do coração antes dos cinqüenta), parei com todos os remédios, estou pré-diabético, hipertenso e uns bons trinta quilos acima do peso, todas as madrugadas enxugo hectolitros de destilados, fermentados, perfume, desinfetante, qualquer coisa que contenha álcool... e nada me acontece. Acordo todos os dias inchado, sem poder fechar os dedos da mão sobre as palmas, meu nariz é um obsceno morango recortado por veias escuras no rosto semi escondido pela barba branca; às dez em ponto, ainda de fogo, chupando a primeira bala de menta do dia, chego no promocenter onde estou defendendo uma graninha de fim de ano.

Até às sete fico lá, vestido com um roupão acetinado, botas e cinto de fivela, além do gorrinho vermelho de bolinha, com uma sineta na mão anunciando as ofertas imbatíveis do mini-shopping de bugigangas chinesas. Neste calor de fritar calango no meio-fio, não sei o que é pior: a canícula, as crianças me puxando a barba (“é de verdade, mãe!”) ou ter que passar a seco oito horas e meia, descontada a meia horinha do almoço, quando engulo uma esfiha, um torresmo ― e um martini com duas pedras de gelo, que ninguém é de ferro. Moro de favor nos fundos de um estacionamento próximo, o que me introduziu na seleta casta de habitantes do centro da cidade-dormitório. A cidade faz parte da Grande São Paulo; não é tão ruim quanto parece, os políticos daqui praticam o saudável esporte de se fuzilarem uns aos outros, o que vem estimulando a imprensa e o setor de serviços locais.

O centro comercial e administrativo é pequeno, mas o município é amplo; a maioria vive em subúrbios meio distantes, descampados, com ruas de terra batida servidas por excelente malha de córregos que também faz as vezes de esgoto. Mas não posso reclamar, vou a pé para a firma que fica na Avenida Brasil com a Araújo de Castro; o duro é que, como lá não tem vestiário masculino, tenho de já ir vestido de Papai Noel, e tome-lhe gozação no caminho. Nos estandes predominam as vendedoras, umas meninas enfiadas em calças jeans dois números menores do que o recheio, que passam a maior parte do dia coladas no celular falando com Deus e o mundo. Tomei gosto por conversar com a Jucilaine, uma dessas coitadas, que ainda por cima está grávida; a velha história: dezoito anos, segunda barriga, segundo pai que desaparece, a avó cria o primeiro brasilino, a mãe trabalha em São Paulo em casa de família.

“Você tem pai?”

“Nem o Noel.”

“E o do... da criança, quem é?”

“Um motoboy do Pizza Express, chama Gabriel.”

Fim de expediente, numa sede da quenga, só pensava na hora de sair dali e já tomar a primeira breja da noite num pé-sujo da vizinhança, só pra lubrificar dando uma banana para quem achasse graça da roupa e para a tal Ceia de Natal. Não sou de ficar emotivo por datas, não antes de encharcar a alma de manguaça, não antes de relembrar que a Yolanda saiu de casa para viver com outra mulher, que as minhas filhas são gerentes de multinacional e já desistiram de me internar em clínicas de reabilitação. Só dei para a mais velha o telefone do estacionamento. Começou então uma daquelas chuvaradas que foi virando enchente em pouco tempo, trânsito parado, os ônibus e peruas passando apinhados de gente sem pegar ninguém no ponto. De repente, a magia das compras havia cessado e as pessoas foram para a porta assistir à fúria das águas que desciam em torrente na direção da parte mais baixa da avenida.

Jucilaine ia dormir na casa de uma amiga, já que no bairro dela o córrego transbordara e nada nem ninguém passaria por ali naquela noite. A mãe ligou dizendo que também não conseguia voltar de São Paulo; ligou para tranqüilizar a avó, que guardasse o peru, fariam a comilança e a entrega de presentes no dia seguinte, paciência. Mas a amiga também estava com problemas na sua quebrada, a Defesa Civil tinha acabado de mandar desocupar toda a rua por risco de desabamento. Ofereci-me para lhe dar um pouso naquela noite de caos; do estacionamento poderia ligar para saber como estavam as coisas com a avó ― ela tinha ficado sem créditos no celular. Não deve ter sido um belo espetáculo, uma dupla bizarra espremida sob o guarda-chuva virado do avesso pelo vento, meio a reboque da enxurrada e com rajadas de chuva batendo de tudo quanto é lado. Menos bonito ainda foi quando fizemos uma parada técnica num boteco, onde abri os trabalhos mandando duas Steinhäger com limão pra baixo; ela recusou o ovo colorido que o garçom lhe trouxe no pires.

Quase que ela poderia ser a neta que não tinha, mas, enquanto caminhávamos aos tropicões pelas ruas alagadas, pensei que tudo aquilo poderia estar ligado ao motivo de eu continuar, misteriosamente, vivo. Fiquei constrangido ao sentir o meu barrigão encostado no dela e, sem entender o que uma coisa teria a ver com a outra, não conseguia tirar a pergunta da cabeça: “qual lição ainda tenho que aprender?” Papo mais besta, esse; acomodei-a no muquinfo em que vivia, presenteando-lhe o colchão e me estiquei na poltrona. O banheiro ficava num puxadinho do lado de fora da edícula; você que neste momento tem acesso a tudo que penso, sabe que velei toda a noite porque faltavam ainda muitos graus GL para me derrubar nos braços de Morfeu, e também que ansiava vê-la levantar-se, ir ao toalete lá fora e voltar toda molhada, se aninhar ao meu lado.

Dar umazinha hoje até que não ia mal, já faz tempo a última. Quantos Natais? Mas o que ninguém poderia suspeitar é que ali, semi-adormecido na poltrona, mamando os restos de uma garrafa de Pitú esquecida no almoxarifado, eu lembrei. Veio tudo, o dia em que pedi a Yolanda que abortasse o que seria nosso primeiro filho, recordei o terror por estar desempregado, o olhar dela; mesmo que duas filhas saudáveis tenham vindo depois, nunca mais dormimos na mesma cama. Será que era isso, finalmente o destino estaria me dando uma mensagem cristalina, eu ainda precisaria conhecer o filho da Jucilaine? Certo, uma criança está vindo; pode não ser muito, mas sempre é alguma coisa.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

sopro

o ar saco de moléculas
onde há ondas sou como
o eco a te eco ar

de seda e sangue entendo
neste tempo inextenso
o dragão na lua desce

tem a sede da bestas a
cada mênstruo da bosta
da lesma do elefante

o cio está nas coisas
da almassolta o cheiro
na relva o orvalho doce

ácido o pensamento
de quem chora a chuva do
dia que teria sido

você pode se enganar
o que eu não posso fazer
é me enganar por você

domingo, 19 de dezembro de 2010

à espera

a gente escravo dessa

força

eu estou no mundo e

o mundo está em mim

é inevitável

no ponto em que cheguei

que as coisas sejam

feitas a partir de outras

mais simples

(e menos reais)

tudo poderia muito bem

nem ter acontecido

hidrogênio gravidade radiação

e tempo

deve existir um motivo

para tanta complicação

mas escapa

como poesia vazante

nos teus gestos lassos

talvez a vida seja

o mais improvável dos destinos

manifestos

mas ainda acredito em sorte

clinamen acaso ou milagres

do amor

sábado, 11 de dezembro de 2010

NEM SEMPRE

nem toda a verdade
acorda

nem tudo que é doce
engorda

nem todo mar é
azul

nem tudo que é belo
nu

nem todo sonho
finda

nem uma utopia
ainda

nem toda paixão há de ser
incerta

nem sempre o sexo
liberta

nem tudo na China será
vermelho

nem chega todo sábio
a velho

nem que eu espere você
volta

nem você gritando ele
nota

nem toda esperança morre
frustrada

nem será toda inocência
abandonada

nem todas as manias
pegam

nem todas as mensagens
chegam

nem toda mulher
chora

nem todo amor vai
embora

nem toda escuridão
alumia

nem sempre há luz
de dia

graças à entropia




a vida é um pequeno


barco de nada



rumo ao nada
final

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

o café da manhã do lagarto

o tempo se despega de mim
como se estivesse trocando
de pele

cada manhã custa renovados compromissos
acordo comigo mesmo
ruminando

cada vida que um dia
me aconteceu espero
algo

que ainda não tem contorno
(apenas pulso) continuo
a vigília mas deixei

de reparar deixei de me importar
com a chuva
com padrões de privacidade mas

relâmpagos alagam de luz
pontes vias expressas e logo as devolvem
ao breu

rasga a madrugada o raio-serpente
iluminam-se os sete bilhões de rostos
do Senhor do Mundo

a rede aviventa os mortos-vivos
banais consumidores de infernos
bairros ruas e condomínios fechados

sábado, 4 de dezembro de 2010

os adiamentos da manhã

o verão chega e estou
atrasado
sem ar para as comemorações
cruas
a vida pesa a soma dos meses
perdidos
mudo movimento das nuvens
embaixo
de um céu demasiado
azul
uma claridade chispa
sem chuva
sem música
vento virando
no porto intangível o poema desperdiça
domingos
manhãs tristes carinhos
a escrita
é um capitão raivoso
a doce inutilidade de morrer
na praia

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

o marinheiro mareado

admiro o fluxo dos pássaros
os passos pelo nada
a seta pulsante
que são

nenhuma selva é melhor que a outra
para quem está perdido
e se o bico quebra
a vidraça é porque apesar de tudo
a fala é de todos
informe

vestíamos as crianças de marinheiro
acabavam de desembarcar neste mundo
mais louco
que o Fabuloso Destino do Chapeleiro
Louco

ontem hoje amanhã há tiros
fogo balas traçantes lares
invadidos
uma coisa leva a outra que leva a outra
mas acaba sempre
aqui

há o tempo indeciso
do inacabado
da dúvida
o corpo se equilibra entre
a reflexão e o relato

o lado belo da vida
é o que só está lá
como possibilidade
questionando
tudo ao seu redor

entretanto isto aparece coberto
por imagens que querem ser
poesia
com seus jogos de aproximação desdobramentos
rítmicos

pesando como um túmulo
irradiando morte para todos
os cantos
é como se nada se completasse
nem houvesse compaixão

apenas um rio a correr

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

a umidade das formas

o cosmo só existe
enquanto existo eu
e no entanto passa
muito
além do que a mente
creu

incrível não é que haja
a beleza
mas que algumas teorias
funcionem

assombroso não é haver
o mundo
mas acreditar
nele

ser humano é nunca estar
por inteiro faltar
à grande orgia
do ser

homens mulheres e outros gêneros continuam a chafurdar
nos mesmos batidos boleros
de amor ódio sexo
e morte

a vida é arte
a arte
sorte

a arte está na terra
molhada e as sensações que a própria terra
tem por estar
molhada

já sou só uma pena
voando
a vida imita a arte
sorte a dela assim
está viva

domingo, 21 de novembro de 2010

Livro dos Recordes Sexuais: a mulher mais satisfeita do mundo


Uma mulher pode ser bem sucedida na profissão, ser esclarecida politicamente, bonita, mau caráter, inteligente, fofoqueira, gostosa, magra, rica, pegadora de namorado alheio, etc., tudo isso, junto ou em combinações, lhe será perdoado, agora, experimente ela ser bem-comida e perderá todas as amizades que tiver ou supor ter. Nem as amigas mais zen, os amigos mais terapeutizados, agüentariam; a verdade é que ninguém perdoa a mulher plenamente realizada na cama. Aquele sorrisinho maroto no canto dos lábios a afrontar colegas de trabalho, digamos, numa segunda-feira de manhã ― suportar quem há de?

― Quando vou ter filhos?! Querida, minha idéia de sacanagem na madrugada não envolve mamadeira nem fralda, a não ser em dias de perversões mais bizarras... ― pela reação da amiga, percebeu que abrira demais a boca. Afinal, quem, no elegante escritório de arquitetura e design, poderia supor que fosse sexualmente feliz, ainda mais depois de nove anos de casamento com um jornalista cultural? A coisa toda começara há dois anos por culpa justamente dele, o marido, Talarico Berdinesque.

Críticos têm, como outras populações corporativas, uma distribuição em curva de sino no tocante à luxúria: vinte por cento de heteros ou homos de raiz, praticantes e apreciadores empedernidos dos jogos venéreos, e aqueles oitenta por cento de eternos indecisos que não sabem que apito tocam, não desocupam a moita, não saem de cima e só sabem foder mas é com a paciência dos outros. Talarico fazia parte desta maioria cinzenta, embora se destacasse como um proativo lambe-cu do dono do jornal onde trabalhava há vinte e um anos.

― Fia, seu Orixá pede uma obrigação ― dois anéis cinzentos cingiam os olhos de Mãe Catarina, olhos que não desgrudaram da tatuagem de um sol na mão direita dela enquanto mergulhava as suas numa cumbuca com água corrente, infusão de folhas de maçacá, corana branca e mel de abelha.

O que talvez seja mais certo dizer é que houve uma série de equívocos que começaram depois que, vencendo o receio de se deslocar sozinha noite adentro para o bairro distante do terreiro, resolveu que precisava apelar para todos os santos à disposição. De saída, antes que pudesse se explicar, a Ialorixá encasquetou que o problema era o casamento, a escassez de nheco-nheco, ao passo que ela queria mesmo era desamarrar as dívidas financeiras do casal. ― Ora ê ê, Oxum, Ora iê, iê! ― a mãe de santo puxou para si a urupemba de palha trançada com os dezesseis búzios por meio dos quais as poderosas entidades afroamericanas iam mandar sua mensagem.

As impressões do ritual voltaram-lhe em sonhos por meses: a galinha amarela, o pinto preto, a cabra e o cabritinho brancos, o cheiro do sangue mesclado ao do bolo de feijão com rodelas de ovo e cebola picada com malagueta, cebolinha e sal; o aroma acanelado do doce de banana prata, os pontos cantados, a gira, o baticum, os colares, brincos e pulseiras, as flores, o fumo, os incensos de perfumes cambiantes... Os sacrifícios da oferenda tinham sido pagos em dinheiro para os Iabás, a terrível “mão de faca” que mata os bichos, o “cargueiro”, que retirou o Ebó; mas restava um problema: o despacho precisava ser levado por mão de homem a uma queda d’água no meio da mata na lua crescente. A custo de muita teima e beicinho, Talarico aceitou fazer a entrega no sítio da família.

Preparou o banho de madrugadinha em casa, fez um café-tinta de forte para o marido, que ia pegar estrada, e trouxe as ervas trituradas para o box do banheiro: malva branca, vassourinha miúda, medalha, bem-me-quer, rosa amarela, baronesa e botão de ouro. Tirou a roupa puxando pelo avesso e largou-a no chão; depois de se lavar com sabonete, juntou os pés e levantou os braços, cantando para a sua santa de cabeça à medida que despejava a vasilha inteira sobre si. Naquele mesmo instante, o marido desistia da viagem a desoras e decidiu largar as tralhas numa esquina qualquer. Não estava para programa de índio, os deuses que achassem o que lhes era devido; que diferença faria o lugar da desova?

Não é improvável que um erro conserte outro, porém, o mais das vezes só faz piorar o que já era ruim. Parou o carro, retirou do bagageiro a tigela, apanhou as velas e dirigiu-se para a encruzilhada em forma de T; temendo ser reconhecido, incomodou-se com a presença de gente nas imediações (exagerava um pouco a fama que tinha), mas foi só acender a primeira vela que a moçada picou a mula rapidinho. Acontece que o Senhor das Encruzilhadas, assim como não curia bebida que passarinho não bebe, não fica sem entregar nada a quem de direito; Exu levou para a Senhora das Cachoeiras o que lhe era devido e esta achou de castigar o Talarico pela ofensa.

Foi o maior susto da vida dela: o homem que voltou para casa naquele dia não se parecia com o marido, melhor dizendo, falava como ele, comportava-se como ele, mas não era a mesma pessoa! Daí pra frente, toda a noite um outro chegava em casa; ninguém mais percebia isso, os porteiros do prédio, os amigos, os colegas de trabalho, ninguém notava ― só ela podia ver que recebia em casa um homem diferente todas as noites. Experimentou marcar um jantar com o chefe dele em casa, só para se admirar com a absoluta normalidade com que todos se comportaram apesar de estar ali um homem negro com o físico de um guarda-costas em vez da sua habitual cara-metade.

O Talarico, em si, não mudou nada, continuava igual a si próprio: uma pitada de Todorov, um cheirinho de De Man, duas mãos cheias de Barthes e Benjamin, no fundo, tal como o patrão, abraçava as idéias de Harold Bloom e rechaçava vivamente o que não encaixasse no cânone ocidental da literatura morta. Já na parte da cama, quanta diferença, quanta fartura em diversidade e diversão! O esposo corno de si mesmo acabou por confessar a falseta e Mãe Catarina pôde lhe explicar que o feitiço não seria desfeito senão ao cabo de sete anos; mas que ficasse sossegada porque os Orixás atuam sobre o plano material e não no plano espiritual, ele voltaria ao mesmo leite-azedo de sempre. Mais cinco anos ainda lhe restavam e ela tratou foi de aproveitar.

Conheceu muitos corpos desde então, descobriu anatomias inéditas, comparava pernas, peles, torsos e quadris, jeitos de se mover e se comportar no fogo da carne e no depois do repouso; em cada um desses desconhecidos havia sempre um segredo, que ora se revelava, ora se furtava a ela, havia transas carnudas, úmidas, molhadas, tristes ou febris, homens magoados, eufóricos, mortificados, preguiçosos, espontâneos, sem destino, violentos, transparentes ou compactos, uns cheiravam a perfumes e outros a sal, alguns suculentos como um fruto, outros livres como animais selvagens, por vezes difíceis, intensos, transtornados, necessitados, alvoroçados, esquecidos, esfomeados, meigos, suaves, raivosos, lúbricos, frios ou arrependidos; em muitos admirou o prodigioso calor, noutros a coragem, a vaidade, a astúcia, alguns a abordaram com esquivas e cautela, tranqüilos como a baía escondida de uma ilha; houve quem adivinhasse seus desejos e a possuísse com genuína comoção, mas houve também os distraídos, os prudentes como cobras, corpos em desordem que buscavam nela ainda mais desordem, enfim, cada noite lhe trazia um arrepio novo, a perspectiva do assombro e da novidade. Mas não se pode dizer que o traía, a não ser uma vez, em que ele mesmo a levou a uma casa de swing, a boate Babilônia, onde, amarrada a um estrado giratório foi possuída por doze homens desconhecidos, enquanto Talarico observava calado, à distância.

sábado, 13 de novembro de 2010

ô disse eu


o fato é que estou cada vez mais desatento
cada vez mais bipolar
mais hipertenso
menos

conectado

a verdade é que não acredito
mais
na verdade
(desacreditei até do beijo francês)

não acredito mais em jornais
promessas de deuses
longínquos
ou vizinhos

só continuo vivo por esquecimento
acomodação
e uma praticidade mesquinha que me leva
a fazer sempre as mesmas
poesias

ao mesmo tempo em que acredito em tudo
(TUDO pode acontecer)
nada me apavora
mais

o fato é que não inventei a novidade
do milênio
permaneci quieto e resignado enquanto meu país
deixa
que homens e mulheres escrevam de uma maneira perfeitamente
controlada

as minhas palavras não funcionam
não são antenas da raça nem
antecipam
futuras gerações ou desenvolvimentos sociais
e técnicos

falta uma espécie de energia aquela
que sobra nesta época
desabrocham as gardênias
acres damas-da-noite
atenuadas pelas magnólias manjericos
e jasmins
_________________________________________

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Zoadinha e o Iluminado

Zoadinha. E dizer que ela descobriu o apelido que a homarada da vizinhança lhe pregara pelas costas só depois que foi trabalhar na casa do velho. A tia que pagava a faculdade do irmão falecera e os herdeiros em guerra cortaram logo o bolsa-escola da solteirona benemerente, de modos que resolveu pegar o turno da noite no home care do ricaço para completar as despesas. Casa de remediado, cai um copo, racha um prato.

― Zoadinha... mas gostosa. A coda do apelido os garanhões de subúrbio, evidentemente, não disseminaram... ― o velho era de falar tudo na bucha, ela, zero burra, devolvia jabs com cruzados, respondia ganchos com diretos. Entenderam-se desde o primeiro encontro.

Saía do trabalho às sete, chegava, dava um talento na casa, deixava a janta pronta e tomava uma ducha rápida antes de sair para a terceira jornada, das nove às seis. De dia era atendente na farmácia do bairro, a falsa magra do balcão; os marmanjos se revezavam em levar-lhe uma cesta provida de camisinhas, ky e comprimidos de levanta-pau só para vê-la no caixa, corando como pimentão enquanto fazia a soma, embalava e indicava os produtos na promoção.

― Faz um desconto do bom, porque ainda vou gastar no rolê com a mina. Mulher e carro, já viu, precisa de dinheiro e gasolina ― disse um.

― Esta casa parece uma caixa com paredes feitas de livros; muitos deles, você que escreveu. Pra quê? ― não era feia, o que é, é que, à primeira vista, o projeto geral parecia meio escangalhado; sobretudo as feições eram esparsas, distribuídas por um crânio alongado demais em que o osso extenso do nariz vinha até embaixo, alargando pouco ao aproximar-se dos lábios generosos. As pupilas, tinha-as fugidias e negras, aqueles olhos quirguizes de caboclo meio puxado a índio, o que os cabelos longos e escuros confirmavam, mas a pele desmentia com uma brancura sardenta e sujeita à ruborização constante.

― Qual deles você gosta mais Zoadinha?... Ah, muito perspicaz, é o meu preferido também; ganhei prêmios com ele ― acabara de completar noventa anos; era de estatura média, não fosse pelo cabeção desproporcional emoldurado por grossas sobrancelhas, nada haveria nele que fosse fisicamente incomum, nem mesmo a magreza que a idade acentuara. Viúvo, seis filhos e cinco netos; ficou morando sozinho no casarão ilhado pela deterioração do bairro. Por causa dos joelhos, não conseguia mais se levantar de cama ou cadeira sem ajuda; um pequeno exército de cuidadores orbitava em torno dele 24 horas por dia. Era considerado um gênio vivo.

O que nela também não colaborava era um começo de giba, conseqüência postural da timidez, que dava a impressão de encurtar o tronco, além de conferir um jeito de cambitinhos arqueados às pernas, além de empurrar para dentro uma bunda que mereceria o destaque da lordose. O velho catucava, chamava-a na chincha, por que acreditava ela ser dedo-podre no amor? ― Aos vinte e sete anos parece cedo, ok, comparada ao senhor sei que não é nada, mas já desisti. Sou que nem curva de rio, só pára tranqueira ― firmes e empinados peitinhos, somados à auto-ironia sarcástica derretiam o ancião.

― “Teomaquia, a luta contra o Deus do mundo e os deuses interiores”... É verdade que teve uma... visão? ― habitualmente iam até meia noite na prosa, raramente tinha trabalho de madrugada, embora às vezes ele se cagasse todo e aí era uma trabalheira dos diabos dar-lhe banho e trocar a roupa de cama. Fora que o coitado ficava pra lá de desconsolado no dia seguinte. O descompasso, cada vez mais acentuado, entre o corpo e a mente acabrunhava-o, sentia-se traído pelo arcabouço em desintegração enquanto o espírito permanecia cruelmente lúcido.

― Senti o Deus que há dentro e fora de nós, fui do visível ao invisível, pulei da realidade subatômica, em que a noção de distância deixa de fazer sentido, aos confins do espaço, onde começa o umbigo do universo que contém este universo, e assim ao infinito; Zoadinha, conheci o sustentáculo do cosmos, a ligação de todas as coisas, o entrelaçamento do humano e da natureza, atingi a mais perfeita beatitude e o mais fundo desespero, onde o místico ultrapassa as aparências e encontra a verdade última, a unidade original em que Deus coincide com a realidade.

― Então foi assim que conseguiu criar a sua maçonaria? Ouvi dizer que só tem granfo lá... Agora, por que é que seus filhos não deixam o senhor aparecer?...

― Ser velho é virar papel higiênico: ou se está enrolado, ou cheio de merda. Por isso meus filhos me afastaram do dia-a-dia do meu instituto, como sustentar a figura de um fundador mítico, apresentando um homem que não anda nem limpa mais o cu sozinho?

― Só não entendo como o criador de uma seita pode falar nos seus livros que é preciso combater o Deus que existe em nós... o senhor é ateu?

― Não sou, nunca fui, religioso e nem fundei cabala nenhuma, sem embargo, não vejo como poderíamos nos livrar Dele, ao menos não definitivamente. Veja, durante a minha epifania não tive apenas um lampejo do que é o universo, mas também enxerguei como as coisas realmente funcionam neste mundo. Daí que passei a vender o único artigo de fé do homem moderno: eficiência.

― Fugiu da minha pergunta, para variar, vamos mudar um pouco, vou lhe ler o que escreveu: “assim como nos chegou, o relato da Criação é uma história mal contada, e toda história mal contada acaba por revelar muito mais do que gostaria”.

― Claro, olhe, quando duas criaturas se encontram, é quase impossível que a mais forte não devore, abuse ou explore a mais fraca. Vale entre animais, vale entre os humanos e Deus; não digo que Ele exista lá fora, no espaço sideral, acontece que, a partir do momento que a linguagem entra em nós, a violência se consuma. A ordem simbólica só entra no corpo causando grandes estragos; Geová, o grande verme, o grande Outro que me habita e me descentra de mim mesmo.

― É arrepiante, o senhor diz que a Bíblia é a história de um estupro. Quer dizer então que nós dois aqui só nos respeitamos porque um não tem mais força que o outro?

― Pode apostar nisso. Leia o Bereshit com muita atenção, Javé cria animais selvagens e domésticos em pares de macho e fêmea e lhes manda frutificar e multiplicar; mas eis que faz exceção ao bicho criado à Sua imagem e semelhança quando leva seu rebanho para o Jardim do Éden, qual o motivo?, esquecimento, distração, lhe garanto que não foi...

― Só que vai uma grande distância afirmar que houve um abuso sexual no Paraíso!

― Um não, dois. Eva também entrou na dança. Atente para o fato de que o pecado original nada ter a ver com sexo, mas sim com o conhecimento; está lá, em Gênesis 3:21, “Eis que o homem se tornou como um e nós, conhecedor do bem e do mal.” Percebeu o “nós”? Deslize de tradução, interpolação tardia? Nada disso, Elohim sabe que não é o único tigre de papel no país das idéias platônicas. Ele cansara das vítimas, mas não do jogo; acompanhe a descendência de Adão e Eva, por que recusa Ele as oferendas do lavrador Caim, mas aceita as do pastor Abel?

― Eu li isso, é outro dos seus absurdos: Caim seria filho de Deus, Abel, de Adão... Já sei o que vai dizer, que Eva afirma ter possuído “um homem com a ajuda do Senhor”, antes de Caim nascer e que isto se repete com Maria e o Cristo, abandonado na cruz... loucura!...

― Chamo-lhe a atenção para a simbologia: árvore, escada e cruz; a árvore do centro do Éden, a escada do sonho de Jacó e a cruz onde morre o Cristo são arquétipos da ligação do mundo sublunar com o supra-sensível, mas também embutem o conflito primordial com a divindade, exemplarmente ilustrado pela luta de Jacó com o anjo.

― Sendo assim, o senhor está dizendo que Deus não é amor...

― Digo que não é só amor, porque há mais que isso em quem o conjurou. Zoadinha, pára de me chamar de senhor...

― Então, senhor, pare de me chamar de Zoadinha!

Alertada por um telefonema anônimo, Rosana, a filha que visitava o velho mais amiudadamente, descobriu que todo um tráfico se estabelecera no seio do improvável casal. Zoadinha vinha contrabandeando umas pilulinhas mágicas para espevitar o sábio geronte, peças íntimas dela foram encontradas nas gavetas do escritório onde se trancavam até altas horas. Demitiu-a sumariamente.

Uma equipe de médicos, incluindo geriatra, ortopedista, gastro e reumatologista, não chegaram a um acordo sobre o fenômeno: o velho passou a gemer dia e noite, a multiplicar queixas de dores por todo lado. Dava dó de ver.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Rrose Sélavy

Rrose Sélavy

quando Katherine Dreier pediu a Duchamp
que produzisse um objeto para a irmã
ele lhe entregou uma gaiola contendo
cubos de açúcar
um termômetro
mármore
e um osso de ave marinha, dizendo
Por que não espirrar?

nada permanece
na alma
nem mesmo a exaustão
o vazio

então, por que não fazer qualquer coisa?
como espirrar
irritação que cresce borbulhando
cócegas
e acaba numa explosão climática
e úmida

eu que vivi sem pátria
eira ou beira
ao ócio do sonho
entregue

que vivi somente ao sol
de Espanha
condenado a ser todas as coisas
e as sombras que elas sonegam
ser a sombra das tuas coxas e da tua boca
valvulada

as panturrilhas e a curva macia dos cotovelos
erguer o ventre não é nada fácil
ainda mais depois de espirrar
depois de descobrir que o mundo é uma fachada
onde se movem enganosos autômatos

eu que vivi em todos os lugares
e fui todas as pessoas
a rota de todos os navios perdidos
percorri o éter de planeta em planeta desfolhando
a intocada flor do futuro

na casa da poesia procuro
andar na ponta
dos pés

temo despertá-la
acordar seu tamanho
imenso

ao menos aprendi
EROS É A VIDA

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

terça-feira, 19 de outubro de 2010

sábado, 16 de outubro de 2010

preciso aprender a desistir (dos meus vícios)

devo confessar que já cometi
poemas


só que poesia é
fogo


poesia escapa sempre
escapa


fumaça de incêndio
(que não há)


na verdadeira poesia não há verdade
só poesia


a verdade é que na vida estamos sós
e a poesia


na vida a poesia é tudo
ou nada


e no entanto a vida pede uma poesia
que falta


mas à poesia não falta
nada

terça-feira, 12 de outubro de 2010



e pra ver "essa praga de urubu. com que roupa eu vou"?

sábado, 9 de outubro de 2010

A Lenda da Maria Sangrenta


Naquela altura Anápolis mal chegaria aos trinta mil habitantes, mas tinha aeroporto, ou melhor, havia lá uma pista asfaltada onde pousava um bimotor por semana. O Presidente ia para a Amazônia com escala em Goiânia, o mau tempo forçou o pouso na cidade, onde, cem anos antes, Da. Ana das Dores perdera uma mula com a imagem de Santana. Da fazenda das Antas fez-se a cidade das Anas, como ficou cristãmente batizada.

A excitação foi geral, o Presidente fez comício, botou falação comprida e ali foi que assinou a declaração em que dizia ao povo que a capital seria transferida para a região central do país. Lindomar gostou logo daquele homem fino de rosto e de maneiras, que magnetizava a todos falando de um país grande e próspero que viria; o sobrenome do homem é que lhe não entrava na cabeça: ouvia “cu-de-chefe”, mas isso não era nome de gente.

O servente de pedreiro Lindomar não pensou duas vezes, assim que os empreitas começaram a recrutar, ele se mandou com mulher e três filhos para construir Brasília. Em novembro de 1956 ele estava lá quando começaram a esburacar as fundações do Brasília Palace Hotel e do Palácio da Alvorada. Nos próximos três anos e meio de insanidade épica, ele ajudaria a erguer aquelas caixas de vidro, mármore e concreto armado com seixos de quartzito.

Antes disso, porém, ele liderou uma revolta dos candangos no canteiro de obras do palácio; quebraram barracões da empreiteira e até derrubaram o “Catetinho”, galpão rústico de jacarandá e peroba do campo onde Juscelino se hospedava nas visitas à futura sede do Poder Executivo. A peãozada recusou-se a comer a carne bichada do rango. Os patrões responderam estralando o reio: mandaram dar uma coça nos líderes da rebelião, vitimando o amigo Paraibinha. Lindomar passou a freqüentar a casa da viúva.

Construir a cidade a partir do nada, no meio daquele cerrado seco e calorento, foi um desafio ao gênio da raça; o Brasil mostrava ao mundo um estilo próprio e único, amálgama do engenho e da arte de um povo voltado para a modernidade. As superquadras emolduradas por largas avenidas desembocando em rotatórias, a esplanada dos ministérios com a barragem do Paranoá ao fundo, a arquitetura de colossais vãos e curvas, os pilares de extrema leveza, os brises de fibro-concreto, os granitos, o elemento vazado dos combogós, tudo lhe dizia que virara um gigante. Vieram mais três filhos.

Como na vida ninguém passa sem aperreio, a viúva do Paraibinha, agora convertida em amante, emprenhou. Arrelia danada. O parto foi uma agonia, a criança, um macho, nasceu bem, mas a mãe quase morreu de uma hemorragia incontrolável. Uma vizinha amamentou o bebê enquanto a mãe se recuperava; Lindomar ia todos os dias visitá-los em Taguatinga. Até que Feliciana, a esposa traída, apareceu na porta do barraco, louca, virada no Coiso, ameaçando o marido, a amásia e a criança. Um pampeiro. Na saída, ainda chutou o cachorrinho cotó da outra.

Pressionado pela patroa, Lindomar mijou pra trás, negou-se a registrar a criança, ofereceu dinheiro e passagem para que a viúva deixasse o Distrito Federal. Ela recusou. Batizou o menino com o nome de Omar, homenagem ao pai fujão e lembrança perene de que, para ela e o filho, a vida nada tinha de linda. Mudou-se para o Rio de Janeiro, foi morar na Rocinha, no puxadinho do barraco de um irmão. Ele se tornou um pai exemplar para os filhos legítimos, conseguiu formar advogada a mais nova, Guiomar, que alcançaria altos cargos na Secretaria de Segurança, na Eletronorte e no ministério de Minas e Energia.

A ascensão da caçula tirou o pé de todos da lama, após trinta anos de sacrifícios a família deixou a cidade-satélite do Guará. Lindomar nunca mais soube notícias do filho, embora Omar freqüentasse a mídia carioca e nacional, traficante conhecido pela alcunha de Mazinho Biluca. Mazinho, implacável nos “negócios”, era um bom filho: instalou a mãe na cobertura de um prédio na favela, botou deque e piscina na varanda, ofurô, TV tela plana, piso de porcelanato e acabamento com pintura texturizada. Namorava Maria da Penha, a popozuda do pedaço. Vidão.

Biluca tinha o costume de pular a cerca, bandido quase nunca é homem de uma mulher só. Acontece que ele passou do ponto e catou a meia-irmã falsa loira da Maria, que, inconformada, resolveu se vingar do casalzinho. Maria era popozuda e linda, mas louca; entregou a fita para os traficantes rivais, molezinha, eles se encontravam fora da favela num apê de cinema que o safado comprara na Barra da Tijuca. Fez questão de acompanhar toda a operação: a tocaia, o julgamento dos chefões no alto do morro, o esculacho dos matadores e a execução de ambos com requintes de crueldade.

Os assassinos deixaram os pertences do Mazinho com Maria: um molho de chaves, o celular, um patuá e a automática. Desvairada, ela saiu a esmo, vagando horas a fio pelos dédalos da favela; chegando ao asfalto, foi tomada por uma firme resolução: queria conhecer o ninho de amor em que a traição se consumara. Pegou o lotação para a Barra. O apartamento era de um luxo delirante, os quadros rodavam à volta dela, as cortinas, os sofás, as luminárias; sufocou com todo aquele chiquê de uma vida estofada que não lhe tinha cabido. Deixou-se cair na cama redonda do quarto, chorava de soluçar.

O espelho, que tomava todo o teto do quarto, refletia cenas tórridas de sexo dos amantes mortos em alternância confusa com a imagem de uma mulher abandonada; como que acompanhava à distância seus próprios atos. Alguns dos livros mais antigos sobre a construção de Brasília trazem fotos invertidas, já que os primeiros registros foram feitos com filmes próprios para slide; da mesma forma, Maria enxergava aquela mulher lá no alto apanhar na bolsa uma arma, ficar de pé sobre a cama e colocar o cano na boca antes de estourar os miolos. A última coisa que viu foi o sangue salpicando o espelho.

O apartamento passou sete anos fechado. Nas noites de lua nova, corriam histórias de vizinhos sobre horríveis e inarticulados gritos vindos do quarto da Maria Sangrenta. Até que uma família se mudou para lá, um lobista de Brasília com a segunda mulher e o filho pequeno. A rádio-pião do condomínio logo noticiava que ele tinha sido pivô de um escândalo recente de intermediações fraudulentas na Controladoria Geral da União. Mudados às pressas, os novos condôminos se instalaram no novo lar sem reformas minuciosas, reservando o quarto do espelho manchado para acomodar o excedente do depósito. Proibiram o menino de freqüentar o cômodo.

Mas criança, já viu, proibiu, tentou. Lindomarzinho, xará do avô, buscava um boneco encaixotado do Ben Dez na ala proibida de seu novo castelo; os pais tinham ido buscar as compras de supermercado na garagem, era um sábado de folga da empregada. Deparou-se com o espelho que emanava uma luz baça, curioso, subiu numa pilha de caixas. Diz uma versão horripilante que o menino foi pego pela alma atormentada da Maria Sangrenta, que o escangotou até lhe quebrar o pescoço. O certo é que a partir daqui começa um mistério que o inquérito policial nunca conseguiu resolver: nas roupas da vítima foi encontrado o sangue de uma mulher.

Lindomar soube da notícia em Brasília, o antigo pedreiro não suportou o acúmulo deste golpe à dolorosa perda da indicação ao Ministério das Cidades pela filha Guiomar. Morreu de enfarte numa idade avançada que ele mesmo desconhecia; a última coisa que ouviu foi o neto de sete anos chamando por ele enquanto caía no abismo.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

dezoito segundos

Quão
perto é o mais perto que você consegue chegar de um dinossauro? Do lado de um esqueleto de epóxi pintado numa exposição de arqueologia? Quanto a mim, lutei contra uma fera dessas com todas as minhas forças por dezoito segundos e, se não saí inteira, pelo menos estou aqui para contar a história.
Parece pouco,
dezoito segundos. Contados pelo meu marido que viu o começo da cena no alto de um barranco sem poder fazer nada. O importante é que me salvei, ele me salvou e os médicos também me salvaram.
Engraçado,
as duas primeiras coisas que me passaram pela cabeça, aparentemente, não tinham nada a ver com o que estava acontecendo; pensei na pesca do aruanã, um peixe carnívoro da amazônia, e no meu casamento.
Converti-me
ao judaísmo para poder casar com o Joel, em vão, já que descobri depois que não podia participar das principais festas do calendário religioso com os pais dele, freqüentadores da sinagoga dos Safra. O sobrenome Kogan, que não adotei, tem importância fundamental na tradição judaica: indica a descendência direta da tribo Cohen. Rabinos de verdade são da linhagem dos Cohen ou dos Levi.
Nunca
tive religião, queria apenas agradá-lo, conquistar a mãe dele e poder conviver com uma família grande e unida. Não tenho irmãos, perdi pai e mãe aos 20 anos, só restaram uns tios afastados e duas tias esquisitonas, Sônia e Vera, que cuidam da minha prima autista, Aline.
A outra
coisa que me veio à mente foi uma imagem terrível, a armadilha para o aruanã-prateado usando botos feridos. O aruanã sente o cheiro de sangue e vem de cardume para cima da gaiola onde está a isca viva, caindo nas redes da pesca predatória. Às vezes conseguimos tratar desses botos, abandonados feito lixo depois da
barbárie.
Vim para a Amazônia realizar a coleta de dados do meu pós-doutoramento; estudo o comportamento territorial e reprodutivo do pirarucu em Mamirauá, reserva ecológica no médio Solimões. O Joel desenvolve projetos de gestão pesqueira com populações ribeirinhas em áreas aquáticas protegidas; nos conhecemos na USP, ele terminando etnologia, e eu, caloura da biologia.
A noção
de desenvolvimento sustentável começou aqui em Mamirauá. Quase um milhão e meio de hectares de floresta tropical submersa, um mundo flutuante submetido a um regime de variação do nível de água da ordem de 20 metros. Um paraíso para cientistas, artistas, ativistas e... turistas.
Nada
contra o ecoturismo, o problema é que muitos pensam que estão no zoológico. Restos de comida humana, por exemplo, prejudicam a relação com animais in natura; uns imbecis aqui deram de alimentar um jacaré-açu de 5 metros e meio, só para filmá-lo alçando seus 500 kg para fora da água e abocanhando peixes no ar.
O vacilo
também foi meu, é verdade, mas a estupidez alheia contribuiu. Havia acabado de pesar e verificar as anilhas de um lote de pirarucus e despejava o tanque de coleta devolvendo-os para o rio. Um deles saltou de volta para o deque, peguei-o com jeito e me debrucei na beirada segurando firme pela guelra. E então,
o bote.
Uma bocarra com 80 dentes afiados saiu das águas escuras e fechou suas mandíbulas no meu braço esquerdo, me arrastando para o fundo. Como o som de taquaras secas, escutei os ossos do braço, do cotovelo e os ligamentos se quebrando instantaneamente. Ouvi um grito antes de cair
na água
― o Joel. Era como ter o braço esmigalhado por uma prensa mecânica, uma torquês operada por músculos descomunais; senti uma dor selvagem, desumana, uma dor que ninguém deveria conhecer; podia localizar cada ponto em que os dentes do bicho se enterravam na minha
carne
dilacerando o que encontravam pela frente. Os jacarés descendem de caçadores que estão aí há 230 milhões de anos, eficientíssimos, são predadores do topo da cadeia alimentar, tão eficientes, que caçam até outros predadores de topo como onças, pumas, jibóias e sucuris. Eu sabia exatamente o que ia acontecer
a seguir:
a dor tem esse efeito de nos tornar brutalmente conscientes. Tudo se passava rapidamente, embora fosse capaz de perceber a passagem de cada centésimo de segundo distintamente. Ele me levava mais e mais para baixo e para o meio do rio, remando propulsado pela cauda e as patas traseiras, enquanto à minha volta minguavam os fiapos de luz coados da superfície.
TRRLOOC!
Girando repentinamente sobre o seu eixo longitudinal, o gigante desencaixou completamente a articulação do ombro, supinando o meu braço num ângulo absurdo; a dor, que acreditava já estar no ápice, sofreu um acréscimo impossível, me conduzindo também a novos e insuspeitados patamares do medo pânico.
Perdi
os sentidos na volta do parafuso, o bicho voltou a atacar com violência, girando agora o membro que já não sentia, na direção oposta; desceu sobre mim uma calma escuridão pouco antes de registrar que o meu braço tinha sido arrancado de vez por um último puxão

acordei de uma noite cega em pleno campo de batalha, conhecia as regras da luta: ele ia voltar, precisava engolir o naco que me arrancou para caber outro. Jacarés comem diariamente 10 % do peso na forma de presas vivas; eles não caçam propriamente, esperam imóveis, aguardam pacientes a vítima chegar desavisada, e só então se movem, rápidos, letais.
Algo
quis viver em mim; nadei louca para o cais, chorando alucinada, berrando, engolindo água, pedindo outra chance ― não queria morrer com 34 anos, não desse jeito. Realizei o sacrifício, entreguei uma parte à mãe d’água para ficar com o todo que sobrasse. Senti as mãos do Joel a me puxar pelos cabelos e camisa para cima do flutuante, do meu ombro jorrava uma coluna de sangue; nos beijávamos
abraçados
e ensangüentados, soluçando como crianças. Desmaiei de novo. Fui levada de barco e monomotor para a cidade de Tefé, onde fui operada de urgência; não posso exprimir em palavras a dívida de gratidão para com o Instituto, que me disponibilizou sua infra-estrutura incondicional e prontamente. Meu marido não saiu do meu lado.
Passei
um bom tempo me tratando, tranquei a pós, fiz análise, tomei 3 tipos de remédios para a depressão. Para minha surpresa, a sogra agora me tratava como da família, engolia sem questionar minha conversão fajuta na sinagoga reformista, onde homens e mulheres rezavam juntos, em português, e até rabina admitia. Joel me contou que desceu o barranco contando os segundos, procurando manter a vista no lugar onde eu desaparecera; ia encarar o jacaré-açu quando me viu subindo à tona.
A cabala
transmuta letras em números, e vice-versa, dezoito equivale ao valor numérico da palavra hebraica “Chai”, que significa “vivo”; no misticismo judaico, o número 18 corresponde ao poder da vontade na alma.
Finalmente
decidimos voltar para a floresta. Deixei a megacidade para trás como se fossem as fotos envelhecidas da infância de outra pessoa, hoje, no mapa do meu mundo, São Paulo é só memória, um pano de cimento sujo semeado de shopping centers. Selva bem mais perigosa que desejo
longe.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

a estratégia r

Você já deve ter ouvido falar que os pobres têm muitos filhos porque são ignorantes, desinformados, não sabem usar métodos anticoncepcionais e etc., etc..

Besteira. E da grossa.

Pabulagem de gente bem nascida que acha que tem o monopólio da inteligência e sensatez, gente capaz de importar ― de lugares onde todos nascem inteligentes e sensatos ― programas de esterilização...

... de gente.

Seres humanos são, entre tantas coisas, organismos biológicos e, como tal, procuram se adaptar às condições em que vivem. Pobres têm poucos recursos, suas circunstâncias são instáveis, seu futuro, incerto.

Indivíduos e populações cujo ambiente muda constantemente reproduzem muito e investem pouco em seus rebentos. Chama-se a isto estratégia r, vale para bactérias, couves, suricatos e... humanos.

Quando o habitat é seguro, o alimento abundante e há poucos predadores, inverte-se a equação reprodutiva (prole menor, mais cuidado) e damos o nome de estratégia k.

Na época em que se passaram estes fatos eu trabalhava na EMBRAPA e percorria a fronteira Minas-Goiás a bordo de uma camioneta F-1000 vacinando o gado para deter uma epidemia de febre aftosa.

Nas grandes fazendas, com os pecuaristas alertados pela televisão, a vacinação em massa andava sem problemas; a minha missão era achar os pequenos criadores dispersos pela zona rural a noroeste de Unaí.

Cheguei com o fim da tarde a uma região conhecida como Valo do Traconhaém, onde, depois de tomar informação de um moleque a cavalo, segui mais sete quilômetros de trilha poeirenta até o sítio do ‘seu’ Benedito Pedrinhola.

Bené Pedrim, como se apresentou, me recebeu de boa mina, levantando-se da rede enquanto um enxame de filhos nos espiava com olhos curiosos e narizes ramelentos. As reses, que já estavam recolhidas no cercado, vacinei imediatamente...

... mas faltava um garrote, que Dona Emerenciana e a filha mais velha tinham ido recuperar lá pras bandas do outeiro. Esperei. Só ia sair dali com todas as cabeças imunizadas.

Assim que me vi partilhando a caninha de Nhô Bené em copos de requeijão rachados, proseando mansinho na sala da tapera sem luz elétrica. Lá fora, a criançada subia e descia pulando da caçamba da camioneta...

... numa algazarra de cem maritacas (eu só pensava se me iam escangalhar o isopor onde guardava as ampolas). Disse-me que a espera seria recompensada por um café passado na hora por Dona Ciana...

... que chegou pelo carreiro que contornava a casa por trás. Ouvimos a voz da criança levando o bicho para o cercado e um retinir de bacias de metal vindos dos fundos. Desconhecendo a minha presença, Dona Ciana chamou de lá ‘seu’ Bené:

“Marido, vai usar hoje?”

Roxo feito jambo maduro, Bené Pedrim tartamudeou constrangido:

“N... não, a causa que...”

“Antão vou lavar só os pé!”

quarta-feira, 8 de setembro de 2010



a clinica na mídia

no dia dos pais, a Folha São Paulo publicou as desventuras em série de um pai diante da errância do filho psicótico. Mesmo sem obter resposta satisfatória, aquele pai acompanhou as peripécias de um filho, apostando num plano de consistência que comportasse uma subjetividade tão original quanto esquisita. Ele concluiu seu relato dizendo que o filho morreu por problemas cardíacos decorrente do uso de medicamentos, e alertou para o banal do fato.

no dia da Pátria, trouxe a trágica epopeia do menino Kyle Warren que começou a tomar antipsicóticos aos 18 meses. Como sua mãe estava “desesperada, sem saber o que fazer”, o psiquiatra achou que os remédios ajudariam a tratar o transtorno da criança: fortes acessos de raiva. a psicoterapia é a chave para o tratamento, mas às vezes as famílias querem uma solução rápida e a terapia pode demorar um pouco para apresentar os resultados buscados.

uma coisa que se ignora é o momento em que a loucura faz buraco no sistema, mas ela sempre se faz acompanhar da aversão à obrigação. Além disso, é depositária do direito do sujeito de decidir por quais vias e enlaces devir.

a lição que se tira destas notícias: nunca esquecer que os medicamentos podem favorecer a melhora, mas que devem ser usados de modo suplementar.

domingo, 29 de agosto de 2010

a parilha

1994. Cinco anos depois da queda do Muro, a Rússia ensaia os primeiros passos no capitalismo. Dois mujiques, Fiodorenko e Pavlovich, deixaram de ser pequenos produtores rurais e tornaram-se proprietários, também pequenos.

Fiodorenko e Pavlovich eram vizinhos na aldeia de Tula, vizinha de Tobolsk, e nada possuíam, exceto uma vaca, o primeiro, e um boi, o segundo. Resolveram cruzar a vaca com boi e aumentar o rebanho.

Nascido o bezerro, a dificuldade: a quem pertence? Cheios de canjibrinas, tinguás e caipiroscas no cachaço, os dois mujiques vão às vias de fato, muito embora de fato não consigam muito estragar um ao outro devido ao pileque.

Levados à delegacia, falam ao mesmo tempo, um a argumentar que o bezerro pertence á vaca, o outro a resmonear que o boi é que tinha fidalguia e pedigree. Pavlovich tenta então uma explicação canhestra:

― Imagine o senhor delegado que eu sou o boi, e o senhor, a vaca. Lhe cubro como os bois fazem com as vacas, e nasce um bezerro. De quem é o bezerro?

Irritado com a vexatória comparação, o delegado responde furioso:

― É da puta que te pariu!

Diante da resposta, Pavlovich vira-se com ar superior para Fiodorenko:

― Conheceu papudo?, se é da minha mãe, é como se fosse meu!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Ontem fui à Bienal do Livro

Juro não consegui sabotar
Eram tantos livros bonitos e belos
Tinha Monteiro Lispector
Tinha tinha Clarice Lobato
Também tinha Jorge Coelho
E quem diria Paulo Amado

Havia as moças bonitas e exigentes...
Seriam também inteligentes?
Ora deixa pra lá, não sabia
Eu o que pensavam!
Tinham sim bonitas coxas
E lindos peitinhos

"Gente" eu vi e senti
Tanto livro e eu sem grana
Quase quase me espanto!
Tudo era muito bom
E isto me causava "gana"
Depois eu vos "conto"

Só sei que não dei bobeira
À meia-luz, ao meio-dia
Valia quase tudfo
Era Book digital
Que até sonhei Melodia
Êta cultura banal;
Muito Muito cuidado
com o anal...

Libni Gerson
22/08/10

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

ORDÁLIO

na verdade o poema me dói
quando vem
lacerando dentro
& fora

nascido de muitíssimas mães
navegando
por uma escura casa
de um canto
ainda mais obscuro
uma certa época
em que fui profundamente
infeliz

às vezes
um abandono doloroso
ou
um peso insuportável
mas a cada vez
e sempre:
um exorcismo

querer escapar
do mundo
é traduzi
lo

na verdade o poema vem
de um lugar sujo
& virgem
da minha
alma

um outro eu
mau
de uma violência grandiosa
demoníaca

cravando
os dentes na vida
e quando ele começa a falar
nos diz que foi
enjeitado

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

ressurreição

Sim, houve um tempo em que uma mulher podia se chamar Odete ― e isto sem prejuízo da sua vida amorosa e sem bullying na escola ―; havia, como hoje ainda há, embora menos, aquela mania de usar a mesma letra para dar nome a todos os filhos. Outros tempos, outros costumes. E também a quantidade de filhos era outra, por exemplo, Dna. Odete, católica apostólica e romana, moradora da Vila Maria, eleitora do Adhemar, do Jânio, do Maluf, do Cunha Bueno e do Collor, era a terceira de cinco irmãos: Oldemário, Olinda, Odete, Onésimo e Onilda. Ninguém merece.

Dna. Nicinha, mãe de Dna. Odete, nasceu, viveu, casou, teve seus cinco filhos em casa e findou seus dias sem nunca ter saído de Brumadinho. Mesmo antes de enviuvar, Dna. Nicinha já criava uma gataria numerosa no pied-à-terre onde passou toda a sua vida de casada. Olinda e Onésimo, que moravam com a mãe, decidiram livrar-se do gatil depois que Deus a levou em Seus braços. Dna. Odete ficou com o Tareco, um macho cinza-almiscarado, caçador e benquisto entre as bichanas da região. Devidamente capado, tratado e gorducho, Tareco se adaptou à maravilha ao ritmo paulistano.

O mundo gira e a Lusitana roda, passam-se os anos e Dna. Odete volta a Brumadinho com o Tareco na gaiolinha. Despachado por avião, assim como a dona, lá se vão eles para um reencontro familiar; a viagem não é curta: avião até Belo Horizonte e ônibus ou van por mais cento e tal quilômetros de uma estradinha nervosa. Ao desembarcar as bagagens, um funcionário do Aeroporto da Pampulha se apercebe da tragédia: o gato está morto dentro da gaiola. Pânico no setor de cargas, chamam a supervisora da companhia aérea que constata o óbvio e se instala o impasse.

Alguém se lembra do Odilon, o encarregado dos depósitos, que, como ele mesmo se auto-define, é o “fazedor de zero a tudo”; o encarregado tinha fama de criar uns gatos na região dos hangares. Odilon traz um gato igualzinho ao falecido felino pelo cangote, o bicho a arranhar, rebusnar e regougar como um louco, e o enfia na gaiola. Problema resolvido. A supervisora retorna para o balcão da companhia a tempo de assistir a Dna. Odete desmaiar na esteira das bagagens. Mais corre-corre, a rechonchuda senhora é levada às pressas para a enfermaria do aeroporto.

Durante o vôo Dna. Odete sonhara que encontrava a mãe no jardim da casa em Brumadinho; chamava-a, mas ela não lhe dava atenção, continuava a cuidar dos gatos. Um deles, o Tareco, levanta o focinho do pires e lhe... sorri! Meio litro de soro e um eletrocardiograma depois, Dna. Odete, omitindo esta parte, conseguiu explicar entre lágrimas:

― Virgem Santíssima, que susto, de repente, tava lá o Tareco vivo! Ele tinha morrido e eu ia levar para enterrar o bichinho na casa de minha mãe, como prometi a ela no leito de morte... No vôo sonhei com ele e aí eu olho, e ele tá vivinho da silva, pelas alminhas, alguém me explique?...

Dna. Nicinha se preocupava muito com o futuro dos seus bichos de estimação. Apesar de idosa e doente, percebia a jiriza renhida de Olinda contra eles, assim que tratou pessoalmente da adoção de cada um, instruindo até sobre os cuidados póstumos. Um milagre acontecera, a notícia se espalhou pelo saguão do aeroporto. Malandro é o gato: como lucro da romaria que se formou em frente à enfermaria, o gatarrão do Odilon se entupiu com a ração que uma alma caridosa lhe trouxe.

sábado, 31 de julho de 2010

o homem que atrasava

― “... no inverno de 1913, dois meses depois de conhecê-lo, Anna vai procurar Aleksandr em sua casa...” ― Luna repassava com ele capítulos inteiros da sua tese de doutoramento em letras russas.

― Essa mulher está de xale negro em todas as fotos ― Bartô queria era dizer que aquela poeta transformara a vida sexual deles numa prosa insípida.

― Mas também... ela foi proibida pelo pai de usar o sobrenome dele, teve o primeiro marido fuzilado pela Revolução, o terceiro morto num campo de concentração, o filho preso...

― “Não sou tão terrível que ingenuamente possa matar; e nem tão ingênua...” ― as coisas lhe corriam bem na corretora, moravam numa cobertura, mas a mulher não saía do computador nos últimos meses.

― “... que não saiba como a vida é terrível”, você já decorou... ― andava preocupada com os atrasos dele, sentia a culpa aguilhoá-la a cada vez que o via levar o jantar esquentado no microondas para a sala de TV sozinho.

***

― “Quem se encontrou com quem, quando e por quê” ― toda vestida e pintada, o chinelo de feltro.

― “...quem morreu e quem sobreviveu e quem é o autor, quem o herói” ― Bartô não conseguia ver mais nada; aquele corpo de bem mais de uma centena de quilos revelou uma nesga de coxa branquicenta, fios de veias azuladas desciam para a panturrilha.

― “... e que necessidade temos, hoje, desse discurso sobre um poeta” ― arrepanhou o tutu da saia como se fosse dar um passo de dança. Desde que ficou claro que além do sexo não tinham outro assunto, falavam assim, recitando.

― “... e um enxame de fantasmas?” ― desolado, deixou-se cair no sofá. Dois meses depois de a ajudar a carregar as compras na garagem, tinha ido ao apartamento dela para tomar o café prometido. O café pelava de tão quente.

― “Ninguém bate à minha porta, o Silêncio mantém silêncio” ― preparou dois drinques e os trouxe para mesinha de centro. Notou que ele ainda não relaxara.

― “... e o espelho sonha apenas com o espelho” ― ela sentou ao seu lado. Sentia-lhe o perfume cálido das carnes graxudas, a massa de ser o envolvia com o balanço nutrido dos seus fluxos e refluxos incontidos. Já na primeira vez que foi lá se atracaram.

― “Hoje, tenho muito o que fazer: devo matar a memória até o fim” ― foi até o quarto, voltou só com o roupão entreaberto deixando adivinhar a lingerie vermelha. Havia pouco tempo, ele logo teria de ir para casa, no bloco B do mesmo condomínio. Não sabiam o nome um do outro.

― “Minha alma vai ter de virar pedra, terei de reaprender a viver” ― saía mais cedo do escritório para trepar com a sua vênus esteatopígia no final de tarde. Quando ela lhe pediu que conversassem sobre alguma coisa, ele só conseguiu repetir os versos da outra. Anna Akhmátova lhe devolvia assim o corpo roubado. Bebeu de uma talagada.

― “Mas um sonho é também algo de real” ― caminhou na direção do quarto, parou recostada ao batente ocupando toda a porta. Soltou os cabelos presos a um lenço de seda. Agarrou-a por trás, falto de a poder abarcar por inteiro. Ela rinchava rouca égua selvagem, sucuri lesa no banhado.

― “O mistério de um não-encontro tem desolados triunfos” ― deu-lhe beijos melados, mordiscou-lhe a saboneteira, a barbela e os três queixos, titilou a orelha miúda, lambe-lambendo os bicos das mamas suntuosas enquanto arrancava o paletó e os sapatos aos tropicões.

― “Frases não ditas, palavras mudas, olhares silenciados” ― a calcinha apertada ela deslizou sobre as coxas rubicundas; o chorume orgânico do seu unto de foca se misturava a ele, que se debatia agoniado embaixo dela na cama queen size.

― “Tu me inventaste, não há um ser assim e nem poderia um ser assim haver” ― o empuxo da matéria pingue o arrastava para as profundezas de um pesadelo gozoso; delirava ao léu por mares de delícias gelatinosas, seu pau e sua alma sugados pelo úbere da mãe d’água suspirosa e gordã.

― “E a tudo isso chamaremos de amor imortal” ― ela sempre soube que ele voltaria para a mulher, não se enganava, mas ainda queria acreditar que se encontrariam num futuro inacreditável quando as forças do mundo se esgotarem.

***

― Meu bem, tenho uma notícia maravilhosa: marcaram a data da defesa! ― Luna viu quando o rosto dele faiscou de desejo, ficou encabulada com olhar que a percorreu de cima a baixo. Tinha engordado nos últimos meses.

a vida depois

Qualquer tragédia que nos atinge tem efeitos imediatos e duradouros; morrer, em certo sentido, é sempre traumático, já que o mais difícil não é sair da vida, mas aprender a morrer. Pode até parecer um truísmo, uma tirada acaciana, maiormente no meu caso, que tive a bênção da chamada boa morte: depois de 83 bem vividos anos, morri como nasci, balançando na rede. Sim, sou um defunto-autor, ou um autor-defunto, se preferirem; antigamente, só os gênios, os gatos, os loucos e os médiuns davam voz e vez aos desencarnados, hoje em dia, com a computação quântica, tudo é possível, até fazer o nada agir sobre um circuito integrado. São os mistérios corriqueiros da informática.

Não dêem ouvidos a essa peta de “narrador inconfiável”, a passagem de plano despe a alma de certas mumunhas que tanto atravancam vocês, que estão aí. Por exemplo, não vou lhes esconder o destino que, cedo ou tarde, nos unirá: assistir da primeira fila o esbulho da família no pós-óbito imediato; minhas filhas tiveram de azeitar com moeda sonante os gonzos da máquina funerária a cada vez que ela se moveu na opereta bufa que foi o meu sepultamento. Morrer não é fácil, mas se aprende, viver é que é uma aventura sem garantias. Sinto muito se ofender crença ou teoria de quem leia estas mal acabadas linhas, mas aqui se trata de uma tanatografia, portanto, nada de dourar as infâmias com a tinta da melancolia, nem de esboçar as baixezas com a pena da galhofa, vou, isto sim, escarificar as cascas de cebola do vivido em primeiríssima pessoa.

Fiz carreira vitoriosa como promotor e atingi a Procuradoria de Justiça, embora tenha me faltado munição para chegar a desembargador; só agora, no entanto, me dei conta da enorme disparidade de status legal entre o nascer e o morrer. Neste belo e pujante país, nasce-se privadamente (se meios os genitores houverem), mas só se morre nos braços descuidados da coisa pública. Cometi a molesta indelicadeza de morrer de madrugada, o que complicou bem certos passos, como obter atestado de óbito do médico tratante e garantir que o rabecão da prefeitura viesse retirar meu presuntivo corpo a tempo e horas de um condigno velório. O médico, amigo de uma das minhas filhas, deixou o atestado na portaria do prédio; já o translado do corpo precisou de um “cafezinho” para agilizar. Nessa, foram logo milão.

A outra filha, como a mais velha fruto do primeiro casamento, foi avisando a família por telefone, enquanto o meu caçula enchia a cara no primeiro boteco que encontrou aberto. Esse menino me preocupa. Sabe aquele negócio de maquiar, enfiar algodão na napa e orelhas, passar baton, vestir o morto?, pois bem: é à parte. O motorista do carro fúnebre ligou, chegaram até rápido; foi sorte, estavam por perto. Sempre em espécie, mais quinhentão. Ao desmaterializar, ganha-se o singular poder de ouvir os pensamentos dos outros, os vivos, de modo que acompanhei a azeda discussão externa e interna sobre a decoração do velório e a escolha do féretro. Minhas filhas pagaram tudo (com os estafermos dos meus genros dando pulinhos), regateando aqui, hesitando acolá, premidas entre os ambíguos sentimentos em relação a mim e o medo de passar vergonha diante da parentada.

Quem não tem dinheiro, ou vontade de gastá-lo com o finado, pode requisitar gratuitamente do poder público uma urna popular, chamada eufemisticamente de modelo standard ― confeccionada num horrendo compensado de madeira e provida de 2 alças que nunca devem ser usadas como tal. É um interessante exemplo de parceria público-privada a atuação das agências funerárias conveniadas aos cemitérios: entre coroas (de flores naturais e artificiais), sala de flores completa, lacre ecológico, paramentos (conforme a religião), véus, velas ¾ e a taxa de sepultamento, mais (para as meninas, menos) três milhetas e meia.

O terno sextavado de madeira que me coube foi um modelo “luxo”, logo acima do standard, mas abaixo do super luxo e distante anos-luz do alto padrão. Este último sim, um objeto de desejo para os ectoplasmas: urna italiana, 6 alças douradas tipo varão, forração acolchoada na caixa e no tampo, travesseiro, babados e sobrebabados em renda, acabamento externo em verniz de alto brilho, opção com e sem Cristo dourado no tampo trabalhado em alto relevo, e visor amplo. O visor, de grande utilidade, permite aquele derradeiro beijo a caminho da cova, sem o incômodo do contato com a carne fria. Vocês talvez nos censurem tais veleidades, mas o fato é que todos dão sua bocada; as coroas e arranjos exibiam secas strelízias, girassóis liofilizados e murchas orquídeas, tangos e gipsofilas. Pétalas de rosas e lírios que deveriam cingir minha rígida figura foram substituídas por popularescos crisântemos; minha mulher, que entende de flores, percebeu e, pudicamente, engoliu mais essa, que havia consumido duzentinhos extra.

A magistratura arraigou em mim o conceito da justiça; embora as pessoas não gostem de ouvir, o certo e o errado existem, assim como existem aqueles a quem compete guiar e exemplar a comunidade. Que estes últimos estejam nas classes superiores e tenham que ser ajudados na tarefa de educar a multidão, causa espécie aos hipócritas. Na única vez em que inverti este proceder, na criação dos filhos, fui muito mal compreendido por minhas filhas, Morgana, a médica, e Cordélia, advogada. O certo é que nunca perdoaram o ter me casado apenas um ano depois de perder a mãe delas para o câncer ― de estômago, como mamãe. Naquela época, eu e meus irmãos fomos distribuídos entre tios e avós; a minha sorte foi tia Mirtes, professora de inglês em Visconde do Rio Branco, ter me dado casa e estudo. Só um irmão veio de Minas para o meu enterro, o pobre veio de ônibus, o que atrasou a bênção final. Quatrocentas razões convenceram padre e coveiro a esperar.

Protegi demais a meu filho, mas porque ele era o mais frágil, o menos preparado para a vida; não agüenta pressão, coitado, voltou a beber agora que se separou, e isto depois da pancreatite que quase o arrebenta de vez. Papai também se acabou na bebida; muitas vezes fico me perguntando se os genes não brincam com nossos destinos. Tudo se repete, tudo volta. Meus últimos anos foram como os primeiros, de muita necessidade e apertura. Estava há dez anos no casarão da Barra Funda, herança da família de Creuza, morando junto com a irmã dela e à espera de sair o inventário de um terreno na Avenida Brasil que poderia nos tirar a todos do cortado. Enquanto tive bens para torrar com ele, Benjamin era papai pra cá, papai pra lá; desde que aquela argentária da mulher e a golpista da filha o jogaram na casa dos velhos, ele logo transferiu os dengos para a mãe. Nem palavra mais me dirigia.

Do lado de cá, as coisas são desorganizadas por demais. Não sei bem como lhes explicar isso, mas acontece que o além-túmulo não tem, assim, como dizer?... uma forma! No éter tudo está a trouxe-mouxe, como que jogado, não há administração, chefia, pessoal encarregado, etc.; é impossível distinguir ordem ou hierarquia, direitos e deveres inexistem, vige uma anarquia meio com cara de abandono. Confesso que esperava receber instruções de Deus, anjo ou demônio, quem sabe um uniforme, sei lá, até mesmo um julgamento serviria. Nada de nada. Espíritos nem bons nem ruins vagam a esmo neste lugar, que não é propriamente um lugar, e se resignam a uma duração que não guarda semelhança com o bom e velho tempo. No começo é angustiante, depois passa, aliás, essa é a única regra fixa por estas bandas: tudo passa. Encontrar familiares, amigos ou mortos ilustres? Só por um grande acaso, que também não ocorreu a qualquer dos meus novos “vizinhos”. Queria tanto encontrar mamãe e tia Mirtes...

Minha neta, filha do Benjamin, se casou há 3 anos e não fui convidado. Acusei o golpe, decaí; o diagnóstico: demência de Lewy. Exames mostraram o meu cérebro coalhado de bolinhas de proteína enovelada, restos dos meus destroçados neurônios. Comecei a variar da cabeça, a falar sozinho; mamãe me aparecia todos os dias. Já não conseguia andar; a prótese de quadril, resultado de um atropelamento criminoso que sofri, desgastara. Ouvi o médico, naquele jargão frio deles, dizer a Morgana na minha frente que já não valia a pena operar. A velha carcaça não pagava mais pule de dez. Como promotor sempre obtive a condenação daqueles que a grita pública exigiu; não sei porquê, ultimamente via nas paredes o rosto de um mendigo atropelado pelo filho de um empresário, rapaz este que alcancei inocentar. Ajudei o amigo, perdi a desembargadura.

Viver vicia. Os mortos só se ocupam do que fazem os vivos, os seus vivos, aqueles que de alguma forma lembram deles ― a mesquinha intriga familiar é o único jogo que motiva os que aqui estão. Porque morrer é entrar no Aleph, o ponto de onde se observam simultaneamente todos os lugares, coisas e pessoas do mundo. Com a nada desprezível vantagem de se enxergar dentro. Porém, com a maior TV a cabo do universo ao dispor, as avantesmas só assistimos ao mesmo triste programa de auditório mundo-cão de antes: a nossa minúscula vidinha. Os fantasmas vão desvanecendo progressivamente, entram numa letargia intermitente; cada vez que alguém ainda chora por ele, lembra dele, com amor ou raiva, toda vez que um neto pergunta quem é aquele da foto, ou do filme caseiro, toda homenagem ou reza em dia de finados, cada pesquisa no Google, produz um evanescente despertar. Ser esquecido é a morte dos mortos.

Sinto uma falta tremenda da Dita, minha cachorrinha; hoje, ela é a única que ainda pensa em mim sem uma ponta de ódio. Cordélia está triste, ainda não sabe que uma melancolia vai cavar um buraco no seu coração durante um ano, mas ela e a irmã vão superar; Creuza também, tem bons sentimentos, a coitadinha. “Colegas” me garantem que a melhor política é o desapego, que não há melhor remédio para o nada vindouro; mas não adianta, quem é senhor de domar o seu próprio eu? Este o busílis: o EU é a criatura de apetite mais voraz que pusemos dentro de nós, exorcizá-lo é que são elas. Funciona como Jesus Cristo: começa dizendo que é irmão, igual a todos nós, depois fala que é Filho de Deus, e acaba por se alçar ao triunvirato com o Pai e a pombinha. Largar de mão desse judeu argentino ― sim, Jesus era argentino, mas é uma história longa demais para começar a contar agora ― que mora dentro de nós é a verdadeira salvação. As almas não são penadas, apenas vão ficando alien(adas).

Deixei uma bomba no meu testamento, mas os meus parentes ainda não sabem. O importante é que fui velado na sala com vista para o vale do Pacaembu do Cemitério do Araçá. Rara naquele inverno chuvoso, uma tarde quente marcou a minha despedida; o pôr do sol banhou a cerimônia de adeus numa luz apaziguadora. Saí dos cafundós de Minas Gerais e venci em São Paulo; meus ossos jazem num belo mausoléu de um dos mais tradicionais campos santos da capital. Estou enterrado no topo da cidade. Meu filho veio, mas não chegou perto da campa. Com o que vi no seu coração posso contar; enquanto ele viver, estarei acordado.