Amigos, volto a publicar depois de quase dois anos no ócio de blogs. Estou pretendendo formar uma parceria com a Casa Amarela - Ateliê Compartilhado para executar várias atividades da Turma do Voto, em especial, palestras e eventos.
Estou pensando em marcar, para a segunda semana de julho, após a Copa do Mundo, uma palestra para apresentar aos membros da Casa o projeto, as atividades a serem realizadas e propor a formação de um núcleo de trabalho dentro da casa.
Conto com o apoio de vocês!
William de Jesus Silva
sábado, 28 de junho de 2014
Blecaute (1)
“Onde
você está?”
“Aqui.”
As segundas
feiras também são tuas. Junto com todo o resto.
Ele pensou.
É preciso o
caos em si para dar à luz uma estrela dançarina. Foram necessárias umas poucas
horas de blecaute para confirmar, ponto por ponto, as suas doutrinas por tantos
anos ridicularizadas.
Não era a
melhor ocasião para um ajuste de contas com o seu passado, no entanto,
comprazia-se mentalmente imaginando o terror pânico em que se encontrariam seus
críticos.
“Achou as
velas?”
“Sim, estão comigo.
Vamos pegar as mochilas.”
O horror se
alastrava na cidade e no mundo com a sanha dos grandes incêndios naquele
instante. Pessoas de olhar perdido vagando em busca de familiares. Saques
generalizados pelas ruas.
Parou. Esperou
que o alcançassem.
O odômetro da
bicicleta marcava 12,3 Km .
Ainda não haviam deixado o aglomerado urbano, mas já estavam na rodovia que os
levaria para longe do perigo maior. Uma jornada de sessenta e seis quilômetros
no total, caminho seu velho conhecido.
Avançavam
cautelosos pedalando pelo acostamento ou entre os carros, abandonados no
megacongestionamento que paralisara as autoestradas logo no começo do apagão. A
população em fuga desordenada simplesmente entupira as rotas de escape tanto na
direção do litoral como do interior. Os faróis dos veículos desertados pelos
ocupantes iluminavam a pista escura auxiliados pelo brilho ralo da lua
minguante.
Por trás dos
morros no céu noturno vislumbravam as projeções alaranjadas das labaredas erguendo-se
atrás deles, na direção da cidade. Estrondavam explosões ao longe, constantemente,
ouviam os estampidos secos dos tiros.
“Cadê nossa
filha?”
“Ficou um
pouco pra trás na subida, o Bob está com ela.”
“O essencial é
agrupar. Só vamos conseguir se estivermos juntos. Hmm, não me agrada fazer isto
de noite...”
“Nem a mim.
Mas a gente não tinha escolha, a cada minuto a situação piora.”
“Aconteceu
exatamente o que eu sempre disse: os grandes ajuntamentos de gente se tornaram
ratoeiras a ser evitadas.”
“Vem pra cá
filho, vem.”
Sim, tudo
acontecia como ele sempre previra.
Sentia-se
vingado e ao mesmo tempo abismado com o que presenciava à sua volta. Jamais
duvidou que seria daquele jeito, mas reconhecia internamente um contragolpe de
susto com a realização integral das suas conjecturas. Como se aquela catástrofe
espetacular estivesse desde sempre destinada a ser crida, preparada, até ardentemente
desejada, mas nunca de fato vivida.
Encare a
realidade de outra forma, que a vertigem passa.
Isso ele
passara a vida dizendo aos outros. Agora precisava repetir o mantra a si
próprio e ao seu grupo de sobreviventes: a mulher, o filho caçula, a filha e o
namorado dela. O moço percebeu de imediato a impossibilidade de retornar ao distante
bairro dos pais, juntou sua scooter aos quatro bicicleteiros em retirada.
Não previra
esta possibilidade: uma boca a mais. De toda maneira, um rapaz no auge da força
não era auxílio desprezível numa situação extrema; pesava nos contras o fato de
o Bob ser virgem em qualquer tipo de treinamento.
quarta-feira, 25 de junho de 2014
o silêncio é mudo
as nuvens passam
carregadas
de sonhos
tudo que vemos
é Vênus
ainda temos
Mercúrio
morte
Marte
morte
tanta falta
de arte
com sorte
vem Júpiter
ou retorna
Saturno
Urano
Netuno
Plutão
domingo, 22 de junho de 2014
Preparação: sustentabilidade, resiliência e paranóia
Seres humanos, ou ,mais
propriamente, urbanos.
Sobreviver nas megaurbes
contemporâneas, paradoxal aventura de auto-organização e suficiência
emergencial. Excesso e carência. Sociedades intensivamente administradas
engendram um tecido desigual e poroso onde as novas ações políticas se
configuram como estéticas.
Nem Karma, nem
Apocalipse ou Juízo Final, o inferno é assim, este agora. Vivemos, e viveremos
cada vez mais, sob o signo do caos e da precariedade. Necessitamos
aprender/desenvolver/intercambiar técnicas avançadas de convívio em situações
extremas.
Resiliência e Sobrevivencialismo. Sustentabilidade em meio ao
insustentável.
Mapear cenários de exceção,
categorizar os Armageddons possíveis, estabelecer planos de evacuação, de
manejo de sementes, agricultura de subsistência, etc.; todas essas medidas podem ser
insuficientes para lidar com o fim dos nossos pequenos mundos de consumo
narcisista.
Não é porque você é paranóico
que não estão atrás de você.
A Editora TIJD apresenta o livro Os
Preparadores, reunindo sete histórias no gênero já clássico do worst-case-scenario. O primeiro manual
do sobrevivencialismo literário em nosso meio propõe-se como uma pergunta:
quais histórias você levaria na sua mochila para o deserto do Real?
Local: Hussardos clube literário, rua Araújo 154, 2º andar
Dia: 27/7 das 16 às 19 horas
quinta-feira, 19 de junho de 2014
com conheci minha irmã (final)
―
Pra você, tudo é muito simples, se é pra defender seus interesses, você vai pra
cima de quem for. A lei me dá direitos pelos anos que estamos juntas, e
moralmente sua mãe reconhece, pus pão e leite nesta casa sozinha enquanto você
crescia... ― Dila começava a abaixar a máscara. Prefiro.
―
Não acredito que vai permitir esse absurdo ― encarei minha mãe duramente, ela
escondeu o rosto no lenço ― A casa da praia foi construída com o suor dos seus
pais, você não vai nem esperar a vó morrer pra fazer essa loucura?
―
Entenda, meu bem, a vida não é fácil, a Dila foi muito legal com você, a Raquel...
e comigo... ― recaiu no chororô.
―
Quem não está entendendo é você, mãe, mais uma vez estão se aproveitando da
senhora. E desta vez com o seu de acordo! Que mais vai ser? Ela leva também os
móveis, a máquina de lavar, a TV, as samambaias?
―
Tudo tem que virar uma discussão sobre coisas materiais?, há bem mais aqui pra
resolver do que dinheiro, bens, tem o lado humano, da convivência...
―
Lado quê?! Só o que eu estou vendo é você adiantar o seu lado, Edilamar. Você
quer levar na maciota, dar a coisa por fato consumado, e fica nesse
quas-quas-quas de lado humano, mas na real está se crescendo pra cima de uma
pessoa que cuida de duas velhinhas!
.― Sabe,
rapaz, às vezes fico tão feliz de te ver crescendo na vida, justificando todo o
sacrifício que fizemos por você, mas outras eu me pergunto que tipo homem está
se tornando.
― Quer saber
mesmo, Dila? A única coisa que cai do céu de graça é chuva. Sou o tipo de cara
que não gosta nada, nada, que façam ele de otário. Morou? ― o tom, entre
condescendente e cínico, daquela a quem já havia chamado de mãe Dila começava a
me tirar do sério.
― Hã-hãm... ― minha
irmã pausou o bate boca durante escassos segundos, suficientes para dispersar o
clima. Ficou por aí.
― São
combinações que já estão acertadas, querido, melhor agir com a cabeça nessas
horas. O casamento acaba, mas a família continua... ― mamãe conseguia terminar
de me irritar passando o pano praquela velhaca.
― Há um
detalhe ― neste ponto ela voltou o rosto na direção da mudinha ― a Raquel vai
ficar comigo.
Ninguém
conseguiu falar durante um bom bocado, apenas ficamos ali, comendo mosca na
sala povoada de dores passadas e presentes. Naqueles minutos imensos de tédio enraivecido,
senti a passagem de uma presença: o rio subterrâneo que corre pelos porões da
imaginação, e que, no entanto, determina todo o relevo da nossa vida de
superfície. Os quatro se levantaram. Depois, sentamos novamente, mudando uma posição
no sentido anti-horário. Raquel arrastou levemente o sofá de um lugar ficando
mais próxima a Dila.
― Então é
assim que a família continua, dividida ao meio?! Abre o olho, mamis, a bola nas
costas que você tomou é dupla!
― Escuta aqui,
cansei das suas provocações. Você espreme tudo e todos que encontra, o
resultado disso é que perde o limão, a limonada, e no fim só há bagaço à sua
volta. Onde você pisa nem erva daninha cresce.
― Tá de boa,
né Dila?, aposentou pelo estado e pela prefeitura, dá uma reformada lá em
Mongaguá, e pronto, cama, mesa, banho e roupa lavada. Sensacional essa sua
mentalidade de funça, amarrou o jegue na sombra, aí é só correr pro abraço. Na
manha do gato.
― Como te dói
saber que dependeu de mim durante tanto tempo, né moleque? Você ainda vai ter
uma pilha de grana, mas nada poderá apaziguar esse bicho que carrega aí dentro.
― Aí, até é
bom você e a mongolóide saltarem fora, vocês não pertencem mesmo, têm cabeça de
pobre. E pobre é igual a lombriga, quando sai da merda, morre.
― Olha como
fala, seu... !
― Acha que não
sou capaz de te dar uns tapas por causa da Maria da Penha?
― Que é que
você quis dizer com traição em dobro? ― minha mãe parecia voltar de um transe, o
olhar distante gradualmente se focando.
― Ainda não se
ligou, não? Bem debaixo das nossas barbas, quem me cantou a pedra foi o P2 que
mandei seguir essa daí. As duas já até andaram de mão dada em Mongaguá, se
pegam dentro do carro. Não botei uma fé quando ouvi.
― Tá
dizendo... quer dizer que a Raquel, a Dila...?
― Estou te
dizendo que a sua querida Edilamar é uma porra de um Woody Allen, criou pra
comer.
― O mesmo fez você.
sábado, 14 de junho de 2014
como conheci minha irmã (4)
Nem
duas semanas se passaram, e Dila convocou uma reunião familiar. Assunto sério.
O zum-zum-zum que rolava é que as minhas mães iam se separar. Dezessete anos
juntas. Os bate-bocas, as DRs e arranca-rabos já tinham passado, agora era
encarar os fatos, e vida que segue. Mamãe estava que era só o pó, as olheiras
quase lhe chegavam ao queixo depois dos meses de insônia curtidos na crise terminal.
Dava uma dó danada vê-la naquele estado, mas o momento era pra falar de
business. Nessas horas, não tem pra ninguém, nunca me deixo pegar de calça
curta.
―
Resolvemos chamar pra esta reunião vocês, filhos, pra dizer que... ― mamãe não
segurou mais e abriu o chafariz. Passei o braço sobre os ombros dela.
―
Tem nada não, mãe, eu já tinha me ligado. Você vai ficar bem, não faz assim...
a família continua, nós tamo junto. Fala aí, Raquel, o que acha, você já sabia
que elas...?
Fez
que sim com a cabeça.
―
Acho que já podemos abrir este assunto, mesmo com o sofrimento que ainda causa,
porque a decisão mais dura já foi tomada ― neste ponto, Dila foi interrompida
por um longo soluço de mamãe. Sentada à direita dela, confortava-a com afagos furtivos
no braço e emprestando-lhe o lenço.
―
Você já tem onde ficar? ― decidi espicaçar logo de uma vez o carcará, quanto
mais rápido decidíssemos a parada, melhor pra minha mãe. Técnica do
esparadrapo: arranca numa puxada só.
―
Precisa dar um tapa na casa da praia, coisa de um mês, dois no máximo. Minha
aposentadoria já saiu, aí é só mudar ― Dila fazia o número da diplomata,
cozinhava o galo em banho-maria.
―
Ah, isso vocês já decidiram as duas? Estão só nos comunicando? ― meu olhar ia
da minha mãe pra Dila, e de volta. Do outro lado da roda de assentos que se
formou na sala, a minha irmã.
―
Filho, eu e a Edilamar achamos que é melhor desse jeito, fica bom pra todo
mundo.
―
Pois pra mim não tá nada bom desse jeito! A casa de Mongaguá é tão sua quanto
esta aqui, mãe, vai dar de mão beijada pra quem tá indo embora?
―
Ei, ei, calma aí rapaz, você esquece quem manteve esta casa e tudo que a sua mãe tem
nestes anos todos? Só porque agora você é o tal dos negócios, não pode apagar o
passado meu filho.
―
Minha mãe é esta daqui! Você deu a bota nela, saiu fora, não foi? Então, cada
um cada qual, você segue a sua vida, nós seguimos a nossa, mas não vem querendo
levar o que não é seu Dila ― voltei-me pro lado da minha irmã, estava lá sentadinha,
quieta, muito direita na cadeira como se isso fosse a coisa mais importante do
mundo ― Não vai abrir o bico, hem, ô mosca-morta?!
Remexeu-se
um pouco, passeou o olhar ausente em volta. Por um segundo deu a impressão de que ia
dizer alguma coisa. Mas não.
―
Pra você, tudo é muito simples, se é pra defender seus interesses, você vai pra
cima de quem for. A lei me dá direitos pelos anos que estamos juntas, e
moralmente sua mãe reconhece, pus pão e leite nesta casa sozinha muitos anos...
― Dila começava a abaixar a máscara. Prefiro.
sexta-feira, 6 de junho de 2014
como conheci minha irmã (3)
Talvez esteja pensando que eu sou
algum tipo de joão-bobo, que vou balangar pra cá e pra lá, chiar, bufar, e
terminar me acomodando à nova situação com um sorriso de palhaço plástico. Tá
muito enganada, nega, conosco ninguém fodosco. Essa biscate esquece que uma
coisa é tretar com um mané qualquer da quebrada, outra é mexer com quem tem
subordinados na folha de pagamento, gente às suas ordens. Expressamente pra
situações como esta é que mantenho um colega de escola trabalhando pra mim: o Pink,
o imbecil do Felício.
Vidinha
lazarenta teve o velho parça de baladas e putedos. Como esperado, tornou-se o
loser que já apontava na adolescência, mas, de quebra, a marvada vida ainda lhe
reservou um surto esquizofrênico e mais duas internações psiquiátricas. Da
turma das antigas, só eu lhe estendi a mão; dou registro em carteira mesmo ele faltando
ao serviço vez por outra. Quando passa uns períodos sem tomar as bombas que
diminuem as vozes na cabeça, e junto volta a mamar umas canjibrinas, o bicho
despiroca e sai pelado nas ruas do bairro gritando que chegou a vez da
Sociedade Alternativa.
Um
desocupado na função de faz-tudo nessas horas é uma mão na roda, botei o
Felício na cola da Raquel. Alguma explicação devia haver para uma mudança tão
repentina de atitude. Loucos e mendigos são ótimos pra ficar pasmando nos
lugares, de campana, porque em geral é isso mesmo que fazem o tempo todo ―
nada. Ninguém passa recibo.
Inocente
fui eu de não acreditar no relatório dele.
―
Porra Pink, não faz sentido nenhum esse bagulho que tu tá dizendo, velho. Parou
de novo com as pílula controlada?
―
Seguinte, mano, não somei nem subtraí, quem não gosta de jiló, come pequi.
―
Caqui o quê, fio, pequi de cu é rola! Quer dizer que a mocoronga...? Não, não
pode ser, tu confundiu as bola...
―
Aí, mano, sou só doze e meio, sou treze não. O que eu vi, eu vi!
―
Pff, doze e meio! Puta merda, isso que dá ficar batendo palma pra louco dançar.
―
Todo louco é um, a loucura é o país de um deus solitário.
―
Bom, de qualquer maneira continua zoiando. Ainda não estou convencido. Você foi
até o local e constatou?
―
Sim, Mongaguá.
Nem
duas semanas se passaram, e Dila convocou uma reunião familiar. Assunto sério.
O zum-zum-zum que rolava é que as minhas mães iam se separar. Dezessete anos
juntas. Os bate-bocas, as D.Rs. e arranca-rabos já tinham passado, agora era encarar
os fatos, e vida que segue. Mamãe estava que era só o pó, as olheiras quase lhe
chegavam ao queixo depois dos meses de insônia em que a crise viera se
arrastando. Dava uma dó danada vê-la naquele estado, mas o momento era pra
falar de business. Nessas horas, não tem pra ninguém, nunca me deixo pegar de
calça curta.
domingo, 1 de junho de 2014
como conheci minha irmã (#2)
Se a minha
família não fosse meio detraqué, as coisas jamais teriam sido o mamão com
açúcar que foram então. Contei a história dela em casa, argumentei mil vezes, enchi
os picuás, falei mais que o homem da cobra, e acabou que convenci a todos da
necessidade de adotar uma órfã de doze anos criada numa zona de meretrício.
Estou
certo de que, se houvesse homem na casa, nada disso seria possível. É como
dizem as minhas mães, “homem é homem”. Isso mesmo: as minhas mães ― fui criado
por duas mulheres, a minha mãe e a companheira dela. Durante muito tempo só me
conheciam na escola como o Filho das Sapas. Do meu ponto de vista tudo era
normalíssimo, desde que me conhecia por gente, havia mamãe e mãe Dila.
A
incorporação da Raquel na família, por outro lado, diminuiu a discriminação
sobre nós. Essas histórias envolvendo adoção, órfãs tiradas de puteiro,
costumam amolecer o coração do nosso povo tão cordato e tolerante. Algumas
vizinhas, as mesmas que antes mudavam de fila no supermercado quando nos viam,
agora se aproximavam solícitas, talvez na esperança secreta de que a filha
adotiva pintasse a vida das duas mulheres de todas as cores. Principalmente
negra.
Que
nada.
Aquela
songa-monga seria o menos indicado dos seres humanos pra infernizar a vida de
alguém: silenciosa, refolhuda, engolfada dentro das suas próprias e insondáveis
brumas, continuava na mesma toada vagante em que a conheci. Um saco plástico
vazio arrastado ao sabor da ventania. Se antes aguentava inerte a rotina
brutalizante dos serviços domésticos na zona, transplantada para um lar da
classe média baixa, conservava a mesma atitude neutra agora que ia à escola e
mãe Dila lhe presenteava vestidos, maquiagem e balangandãs.
Raquel
parecia não tomar nunca posse de nada, talvez com medo de que, como tantas
vezes antes, lhe fosse subitamente tirado. A desgraceira suficiente pra sete
encarnações lhe ensinara a lição do fogo: desacreditar em definitivos. Vivia
conosco como se a título de hóspede permanente, sombra doméstica movente e
reconfortante. Nunca a ouvi reclamar do que fosse, nunca um suspiro, um
palavrão.
Depois
que “papai” comeu e caiu fora, Dila ocupou o lugar do macho provedor na vida e
na casa de mamãe, onde já moravam a minha avó e uma tia idosa. Minha mãe
cuidava da casa e das velhas, eu fazia bico de motoboy e estudava. Uns anos
após a chegada da minha irmã é que as coisas começaram a mudar. Eu estava no
fim do colegial e comecei a entender que não ia conseguir, e também não ia
adiantar, fazer faculdade. Trabalho com informática, uma das poucas coisas
neste mundo em que o que você precisa pra se desenvolver não está escondido nas
universidades, tá por aí, acessível a quem tiver saco de aprender.
Eu
tinha. Tornei-me programador e montei minha empresa de serviços, cresci, abri
meu escritório numa parte da cidade em que os traficantes não mandam no bairro
e a milícia não chega atirando em pobre. Tinha ultrapassado os vinte anos e
enxergava um futuro de conquistas à minha frente. Em primeiro lugar, tiraria a
família daquele buraco. Tudo certo, só faltou combinar com os russos.
Foi
nessa época que tive um sonho impressionante. Estou num pavilhão envidraçado
com um buraco no meio. O buraco tem quilômetros de profundidade, microfones
gravam o ruído que vem do fundo da Terra e o barulho fica reverberando nas
paredes transparentes do pavilhão. Pergunto-me se aquele é o som da origem do
universo, terrivelmente grave e estranho. Só sentando no chão pra entender. Mas
aí já não é o mesmo lugar, é uma clareira no meio da mata fechada, à minha
frente vejo uma estrutura de aço, espelhada, um labirinto. Por fora, as paredes
refletem a vegetação ao redor, por dentro, texturas imitam raízes, folhas,
troncos. O tempo todo ouço um barulho de água. E, bem no centro da coisa,
depois de percorrer corredores, alguns sem saída, voltar, entrar de novo, cheguei
a uma bomba d'água.
Grandes mudanças, muitas vezes, são
anunciadas por pequenas alterações. A maneira como percebi que havia gato na
tuba foi por meio da Raquel: de repente, numa bela tarde de domingo, a
cara-de-coió resolveu que não ia dar mais pra mim. Assim, do nada.
— Quero mais não, isso num tá certo.
— E quem disse que você dá pitaco?
Tá bem louca, tá afim de levar umas piaba sua rameira?
Dei-lhe uns cascudos, mas não
adiantou. Obstinou-se naquilo, não ia abrir as pernas, o cu, a boca, nem nenhum
orifício que pudesse satisfazer minha precisão. Durante anos não teve erro,
comi a esquilinha sem sustos; na miúda, pra não escandalizar a família, mas
sempre que necessitei e quis. Afinal, homem é homem.
Quando contei sobre ela às minhas
mães, escondi o fato de que a obriguei a dar uma metida, paga com a promessa de
tirá-la da zona. Com ela em casa, achei que seria um desperdício não continuar aproveitando
o silêncio cúmplice da mudinha. E agora, isso. Uma vagabunda que não tinha onde
cair morta, cheia de querer ser.
Baita de uma mal agradecida.
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