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domingo, 27 de novembro de 2016

Super K (3)




Candy deu uma tragada no cigarro eletrônico desprendendo uma fumaça inodora, ajustou o equipo do soro no braço da paciente e regulou a infusão do anestésico e do relaxante muscular. A mulher deitada na cama hospitalar rapidamente perdeu a consciência. Fez uma mesura exagerada na direção de Ana Cecília, que acabara de entrar na sala de eletroconvulsoterapia.
“Ora, minha querida, retire esse meio sorriso desaprovador do seu rosto lindo e junte-se aos que batalham pela saúde mental da humanidade sofrente.”
“Não seria eu a tirar de você o prazer de um eletrochoque. Mas vim para lembrá-lo da reunião com a Anvisa, acho que vamos ter uma boa batalha hoje pela continuidade da nossa pesquisa em prol da ‘humanidade sofrente’.”
“Ora, bobagens! Os aparelhos antigos produziam pulsos longos, sinusoidais, agora veja esta belezinha: um eletrodo só na têmpora direita da dona Maria, um estímulo elétrico ultrabreve de 0,25 milissegundos e... voilà, tratamento antidepressivo rápido, menos efeitos colaterais, e remissão prolongada”, um pequeno estremecimento perpassou o corpo da paciente, cujo rosto se contraiu adquirindo uma coloração azulada evanescente, no canto da boca entreaberta escorria um filete espesso de saliva.
“Você acha mesmo que os benefícios dessa técnica compensam a perda de funções cognitivas que ela acarreta?”
“Minha cara, se ignorance is bliss, por que não o seria o esquecimento? No palácio da memória há muitas masmorras de suplício. Em primeiro lugar vem o dever, sendo assim, vamos.”
Candy tirou o jaleco e as luvas, deu uma rápida ajeitada no terno e carregou no celular os arquivos da sua fala para os técnicos do governo e os investidores privados. Sabia que os questionamentos quanto aos riscos da pesquisa que conduzia no laboratório colocavam em risco o fluxo dos financiamentos e doações, mas na sua auto-suficiência não havia espaço para hesitações. A mídia acompanhava com lupa os resultados do testes em cobaias humanas recrutadas nas prisões ― havia um óbvio interesse público na promessa contida no Super K, cura rápida e permanente da maior epidemia do século XXI, mas o número crescente de vítimas fatais do experimento clínico começava a despertar a crítica especializada. Alguns analistas falavam abertamente em rever os protocolos de segurança, mesmo quando se tratasse de condenados à morte ou prisão perpétua. Ana Cecília observava cada um dos seus gestos, numa atitude oscilante entre a dúvida e a admiração.
“Senhores e senhoras, antes de entrarmos no assunto específico desta reunião, permitam-me um pequeno excurso. Todos aqui sabem que as novas biotecnologias possibilitaram o que antes era assunto da ficção científica: superar o envelhecimento biológico e a morte. A idéia de que todos os organismos, e até mesmo a vida, sejam algoritmos dentro de um processamento de dados levou a avanços dramáticos em nossa estrutura política e social. O surgimento da computação quântica, o domínio do processo de envelhecimento celular, tecnicamente conhecida como apoptose, e o desenvolvimento das enzimas reparadoras de defeitos genômicos, que corrigem a degeneração causada pela radiação, levou ao advento de uma inédita geração de humanos imortais. Evidentemente, tais avanços trouxeram novos desafios: o custo das despesas médicas disparou, e, na prática, o que vemos hoje é uma sociedade dividida entre os que podem e os que não podem arcar com o preço destas tecnologias, entre os poucos bem-aventurados e os muitos mortais. Aprendemos a reformatar a realidade física e ecológica fora de nós, mas não entendemos bem como o sistema da economia dos afetos funciona. Isto resultou na ruptura deste sistema: vemos hoje uma população de privilegiados tombar sob o peso de distúrbios mentais resistentes aos tratamentos disponíveis...”
“Doutor Candido, sem querer interrompê-lo, mas já interrompendo, gostaria de deixar claro que esta reunião tem o objetivo de elaborar um discurso crível para a opinião pública”, a diretora-chefe iniciou a sabatina, secundada pelos membros do conselho.
“O fato, nu e cru, é que a sua pesquisa com os derivados da quetamina está simplesmente produzindo uma pilha de cadáveres.”
“Já há quem diga que as pesquisas médicas se tornaram um programa de extermínio em massa de pobres, que o Ministério da Saúde virou o Ministério da Morte!”
“Quando se tratava simplesmente de experimentar drogas perigosas em bandidos condenados, a população tolerava bem. No máximo dizia-se: um problema a menos. Mas a coisa saiu de controle.”
“O que o senhor teria a propor como estratégia de controle de danos à nossa imagem de promotores do bem-estar público?”
“Penso que deveríamos controlar o acesso aos dados preliminares da pesquisa”, Candy suava, demonstrando inabitual desconforto, “restringir a divulgação aos veículos mais, digamos, alinhados com as diretrizes governamentais, focar numa agenda positiva, afinal, há resultados animadores para mostrar. Duvido que uma pesquisa científica possa servir de estopim para revoltas populares”
Candido e Ana Cecília voltaram em silêncio, ela insistiu para que fossem descansar o resto do dia depois do massacre da reunião com as agências de fomento à pesquisa. Mas o colega e chefe não se mostrava inclinado a alterar a rotina de trabalho.
“Vou supervisionar uma cirurgia estereotáxica agora Ana, e depois, trabalhar é o que realmente me descansa.”
“Pára com isso, Candy, amanhã você pode fritar cérebros com à vontade. Tenho um Chatêau Lafitte em casa, e te prometo uma massagem relaxante. Até workaholics como você podem tirar uma tarde de descanso. By the way, gostei muito do que ocê falou sobre os sentimentos”
“Você sabe o que penso sobre o assunto: subterfúgios do egoísmo. Eu te amo para que você me ame. Vistos de perto, os sentimentos são quase sempre sinistros.”


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