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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

dezoito segundos

Quão
perto é o mais perto que você consegue chegar de um dinossauro? Do lado de um esqueleto de epóxi pintado numa exposição de arqueologia? Quanto a mim, lutei contra uma fera dessas com todas as minhas forças por dezoito segundos e, se não saí inteira, pelo menos estou aqui para contar a história.
Parece pouco,
dezoito segundos. Contados pelo meu marido que viu o começo da cena no alto de um barranco sem poder fazer nada. O importante é que me salvei, ele me salvou e os médicos também me salvaram.
Engraçado,
as duas primeiras coisas que me passaram pela cabeça, aparentemente, não tinham nada a ver com o que estava acontecendo; pensei na pesca do aruanã, um peixe carnívoro da amazônia, e no meu casamento.
Converti-me
ao judaísmo para poder casar com o Joel, em vão, já que descobri depois que não podia participar das principais festas do calendário religioso com os pais dele, freqüentadores da sinagoga dos Safra. O sobrenome Kogan, que não adotei, tem importância fundamental na tradição judaica: indica a descendência direta da tribo Cohen. Rabinos de verdade são da linhagem dos Cohen ou dos Levi.
Nunca
tive religião, queria apenas agradá-lo, conquistar a mãe dele e poder conviver com uma família grande e unida. Não tenho irmãos, perdi pai e mãe aos 20 anos, só restaram uns tios afastados e duas tias esquisitonas, Sônia e Vera, que cuidam da minha prima autista, Aline.
A outra
coisa que me veio à mente foi uma imagem terrível, a armadilha para o aruanã-prateado usando botos feridos. O aruanã sente o cheiro de sangue e vem de cardume para cima da gaiola onde está a isca viva, caindo nas redes da pesca predatória. Às vezes conseguimos tratar desses botos, abandonados feito lixo depois da
barbárie.
Vim para a Amazônia realizar a coleta de dados do meu pós-doutoramento; estudo o comportamento territorial e reprodutivo do pirarucu em Mamirauá, reserva ecológica no médio Solimões. O Joel desenvolve projetos de gestão pesqueira com populações ribeirinhas em áreas aquáticas protegidas; nos conhecemos na USP, ele terminando etnologia, e eu, caloura da biologia.
A noção
de desenvolvimento sustentável começou aqui em Mamirauá. Quase um milhão e meio de hectares de floresta tropical submersa, um mundo flutuante submetido a um regime de variação do nível de água da ordem de 20 metros. Um paraíso para cientistas, artistas, ativistas e... turistas.
Nada
contra o ecoturismo, o problema é que muitos pensam que estão no zoológico. Restos de comida humana, por exemplo, prejudicam a relação com animais in natura; uns imbecis aqui deram de alimentar um jacaré-açu de 5 metros e meio, só para filmá-lo alçando seus 500 kg para fora da água e abocanhando peixes no ar.
O vacilo
também foi meu, é verdade, mas a estupidez alheia contribuiu. Havia acabado de pesar e verificar as anilhas de um lote de pirarucus e despejava o tanque de coleta devolvendo-os para o rio. Um deles saltou de volta para o deque, peguei-o com jeito e me debrucei na beirada segurando firme pela guelra. E então,
o bote.
Uma bocarra com 80 dentes afiados saiu das águas escuras e fechou suas mandíbulas no meu braço esquerdo, me arrastando para o fundo. Como o som de taquaras secas, escutei os ossos do braço, do cotovelo e os ligamentos se quebrando instantaneamente. Ouvi um grito antes de cair
na água
― o Joel. Era como ter o braço esmigalhado por uma prensa mecânica, uma torquês operada por músculos descomunais; senti uma dor selvagem, desumana, uma dor que ninguém deveria conhecer; podia localizar cada ponto em que os dentes do bicho se enterravam na minha
carne
dilacerando o que encontravam pela frente. Os jacarés descendem de caçadores que estão aí há 230 milhões de anos, eficientíssimos, são predadores do topo da cadeia alimentar, tão eficientes, que caçam até outros predadores de topo como onças, pumas, jibóias e sucuris. Eu sabia exatamente o que ia acontecer
a seguir:
a dor tem esse efeito de nos tornar brutalmente conscientes. Tudo se passava rapidamente, embora fosse capaz de perceber a passagem de cada centésimo de segundo distintamente. Ele me levava mais e mais para baixo e para o meio do rio, remando propulsado pela cauda e as patas traseiras, enquanto à minha volta minguavam os fiapos de luz coados da superfície.
TRRLOOC!
Girando repentinamente sobre o seu eixo longitudinal, o gigante desencaixou completamente a articulação do ombro, supinando o meu braço num ângulo absurdo; a dor, que acreditava já estar no ápice, sofreu um acréscimo impossível, me conduzindo também a novos e insuspeitados patamares do medo pânico.
Perdi
os sentidos na volta do parafuso, o bicho voltou a atacar com violência, girando agora o membro que já não sentia, na direção oposta; desceu sobre mim uma calma escuridão pouco antes de registrar que o meu braço tinha sido arrancado de vez por um último puxão

acordei de uma noite cega em pleno campo de batalha, conhecia as regras da luta: ele ia voltar, precisava engolir o naco que me arrancou para caber outro. Jacarés comem diariamente 10 % do peso na forma de presas vivas; eles não caçam propriamente, esperam imóveis, aguardam pacientes a vítima chegar desavisada, e só então se movem, rápidos, letais.
Algo
quis viver em mim; nadei louca para o cais, chorando alucinada, berrando, engolindo água, pedindo outra chance ― não queria morrer com 34 anos, não desse jeito. Realizei o sacrifício, entreguei uma parte à mãe d’água para ficar com o todo que sobrasse. Senti as mãos do Joel a me puxar pelos cabelos e camisa para cima do flutuante, do meu ombro jorrava uma coluna de sangue; nos beijávamos
abraçados
e ensangüentados, soluçando como crianças. Desmaiei de novo. Fui levada de barco e monomotor para a cidade de Tefé, onde fui operada de urgência; não posso exprimir em palavras a dívida de gratidão para com o Instituto, que me disponibilizou sua infra-estrutura incondicional e prontamente. Meu marido não saiu do meu lado.
Passei
um bom tempo me tratando, tranquei a pós, fiz análise, tomei 3 tipos de remédios para a depressão. Para minha surpresa, a sogra agora me tratava como da família, engolia sem questionar minha conversão fajuta na sinagoga reformista, onde homens e mulheres rezavam juntos, em português, e até rabina admitia. Joel me contou que desceu o barranco contando os segundos, procurando manter a vista no lugar onde eu desaparecera; ia encarar o jacaré-açu quando me viu subindo à tona.
A cabala
transmuta letras em números, e vice-versa, dezoito equivale ao valor numérico da palavra hebraica “Chai”, que significa “vivo”; no misticismo judaico, o número 18 corresponde ao poder da vontade na alma.
Finalmente
decidimos voltar para a floresta. Deixei a megacidade para trás como se fossem as fotos envelhecidas da infância de outra pessoa, hoje, no mapa do meu mundo, São Paulo é só memória, um pano de cimento sujo semeado de shopping centers. Selva bem mais perigosa que desejo
longe.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

a estratégia r

Você já deve ter ouvido falar que os pobres têm muitos filhos porque são ignorantes, desinformados, não sabem usar métodos anticoncepcionais e etc., etc..

Besteira. E da grossa.

Pabulagem de gente bem nascida que acha que tem o monopólio da inteligência e sensatez, gente capaz de importar ― de lugares onde todos nascem inteligentes e sensatos ― programas de esterilização...

... de gente.

Seres humanos são, entre tantas coisas, organismos biológicos e, como tal, procuram se adaptar às condições em que vivem. Pobres têm poucos recursos, suas circunstâncias são instáveis, seu futuro, incerto.

Indivíduos e populações cujo ambiente muda constantemente reproduzem muito e investem pouco em seus rebentos. Chama-se a isto estratégia r, vale para bactérias, couves, suricatos e... humanos.

Quando o habitat é seguro, o alimento abundante e há poucos predadores, inverte-se a equação reprodutiva (prole menor, mais cuidado) e damos o nome de estratégia k.

Na época em que se passaram estes fatos eu trabalhava na EMBRAPA e percorria a fronteira Minas-Goiás a bordo de uma camioneta F-1000 vacinando o gado para deter uma epidemia de febre aftosa.

Nas grandes fazendas, com os pecuaristas alertados pela televisão, a vacinação em massa andava sem problemas; a minha missão era achar os pequenos criadores dispersos pela zona rural a noroeste de Unaí.

Cheguei com o fim da tarde a uma região conhecida como Valo do Traconhaém, onde, depois de tomar informação de um moleque a cavalo, segui mais sete quilômetros de trilha poeirenta até o sítio do ‘seu’ Benedito Pedrinhola.

Bené Pedrim, como se apresentou, me recebeu de boa mina, levantando-se da rede enquanto um enxame de filhos nos espiava com olhos curiosos e narizes ramelentos. As reses, que já estavam recolhidas no cercado, vacinei imediatamente...

... mas faltava um garrote, que Dona Emerenciana e a filha mais velha tinham ido recuperar lá pras bandas do outeiro. Esperei. Só ia sair dali com todas as cabeças imunizadas.

Assim que me vi partilhando a caninha de Nhô Bené em copos de requeijão rachados, proseando mansinho na sala da tapera sem luz elétrica. Lá fora, a criançada subia e descia pulando da caçamba da camioneta...

... numa algazarra de cem maritacas (eu só pensava se me iam escangalhar o isopor onde guardava as ampolas). Disse-me que a espera seria recompensada por um café passado na hora por Dona Ciana...

... que chegou pelo carreiro que contornava a casa por trás. Ouvimos a voz da criança levando o bicho para o cercado e um retinir de bacias de metal vindos dos fundos. Desconhecendo a minha presença, Dona Ciana chamou de lá ‘seu’ Bené:

“Marido, vai usar hoje?”

Roxo feito jambo maduro, Bené Pedrim tartamudeou constrangido:

“N... não, a causa que...”

“Antão vou lavar só os pé!”

quarta-feira, 8 de setembro de 2010



a clinica na mídia

no dia dos pais, a Folha São Paulo publicou as desventuras em série de um pai diante da errância do filho psicótico. Mesmo sem obter resposta satisfatória, aquele pai acompanhou as peripécias de um filho, apostando num plano de consistência que comportasse uma subjetividade tão original quanto esquisita. Ele concluiu seu relato dizendo que o filho morreu por problemas cardíacos decorrente do uso de medicamentos, e alertou para o banal do fato.

no dia da Pátria, trouxe a trágica epopeia do menino Kyle Warren que começou a tomar antipsicóticos aos 18 meses. Como sua mãe estava “desesperada, sem saber o que fazer”, o psiquiatra achou que os remédios ajudariam a tratar o transtorno da criança: fortes acessos de raiva. a psicoterapia é a chave para o tratamento, mas às vezes as famílias querem uma solução rápida e a terapia pode demorar um pouco para apresentar os resultados buscados.

uma coisa que se ignora é o momento em que a loucura faz buraco no sistema, mas ela sempre se faz acompanhar da aversão à obrigação. Além disso, é depositária do direito do sujeito de decidir por quais vias e enlaces devir.

a lição que se tira destas notícias: nunca esquecer que os medicamentos podem favorecer a melhora, mas que devem ser usados de modo suplementar.