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domingo, 28 de abril de 2013

O último fim de mundo do milênio (VIII)



DOUTOR JORDÃO & METALEIRO 21:46

            Kelson gosta muito de contar a seguinte história.
Ele jogava no clube Pequeninos do Jockey, tinha nove anos de idade e era o craque do time que disputaria a final da categoria petizes. Sozinho no banheiro, descobriu que a porta estava emperrada. Gritou, pediu socorro. Nada.
Qualquer outro garoto iria se sentar e, mais que provavelmente, chorar. Mas não o Kelson, ele queria ganhar o prêmio reservado ao artilheiro do campeonato: uma bicicleta BMX. Subiu na privada, arrebentou os vidros da janelinha com a sola da chuteira e saiu por ali, arranhando-se nos cacos do vitrô. Jogou a final com as feridas ainda semi-abertas, marcou três gols e ganhou o tão sonhado troféu.
Kelson gosta menos desta outra história, mas sempre a menciona quando fala da sua conversão religiosa.
Ele sofreu um acidente grave aos dezessete anos com a sua bike de manobras radicais e ficou seis meses internado. Fraturou cinco costelas, a mandíbula, duas vértebras e o fêmur esquerdo; segundo os prognósticos dos médicos eram grandes as chances de não voltar a andar (setenta por cento). Voltar a jogar futebol, nem se cogitava.
O resto é história: ele se recuperou de forma surpreendente, foi para as categorias de base do São Paulo Futebol Clube, e tornou-se o principal jogador da equipe principal antes de atingir a maioridade. Uma jóia rara. Não um diamante bruto a ser lapidado, mas, como acontece aos grandes gênios da bola, apareceu para o público já pronto para carregar seu clube nas costas e envergar a camisa da seleção nacional. Aos dezenove anos, Kelson não era mais uma promessa, mas realidade.
Tudo na vida do jovem craque parecia seguir o habitual roteiro da jornada do herói: o menino pobre, vindo do nada, portador de um dom divino de tão excepcional, que encontra no seu caminho uma terrível tribulação a qual põe sua vida em risco; a partir daí, ele sofre uma transformação decisiva e retorna para levar sua missão a cabo. Porém, em se tratando do futebol quatro vezes campeão do mundo, as coisas nunca podem seguir cartilhas simples e consagradas ― há um entranhado (pré) conceito de que devemos dificultar ao máximo para os artistas da bola, de modo que, sobreviver, por si só, já será marca de excepcionalidade.
O doutor Jordão considerava o assunto sob o prisma dos interesses do seu amado tricolor paulista; nesta visada, o problema todo residia na chamada Lei Pelé. Ministro do Esporte no governo de Fernando Henrique Cardoso, Pelé conseguira aprovar no Congresso Nacional uma lei que adequava o Brasil ao fim da instituição do “passe” no resto do mundo. Na prática, significava o fim da escravidão no futebol: depois da jurisprudência internacional estabelecida no caso Bosman, cada jogador ficava livre para trabalhar no clube que escolhesse ― como qualquer outro trabalhador em um país livre.
Melhor jogador do mundo, mas um belo de um ingrato, esse crioulo! Onde já se viu, deixar o clube formador sem uma percentagem na negociação desses garotos? A gente gasta uma gaita durante anos nessa molecada piolhenta... e pra quê? Vem um sanguessuga de um empresário, enche a cabeça do garoto e da família, e tchau pro clube que o alimentou, alojou, pagou médico, nutricionista, fisioterapeuta, tudo... Lei Pelé, pois sim, eu é que não vou deixá-lo sair assim, de graça!
Aí residia o impasse: em breve, Kelson completaria vinte anos, pela nova lei, estaria então apto a assinar contrato com a agremiação esportiva que bem entendesse ― detalhe: sem que este clube precisasse pagar um centavo ao São Paulo. Manchester United e Real Madrid mandavam emissários para assistir aos jogos do garoto no Morumbi; em campo, o menino-prodígio desmontava as defesas adversárias com suas irresistíveis arrancadas rumo ao gol. Tinha de agir com rapidez e precisão para salvaguardar o patrimônio do soberano Tricolor.
Um incidente estúpido abriu-lhe a janela de oportunidade de que necessitava: em jogo valendo classificação para a Taça Libertadores da América, obsessão sampaulina, a equipe havia sido desclassificada perdendo fora de casa para uma equipe paranaense. Com o beneplácito do apitador, a partida tinha sido uma verdadeira carnificina; um volante-brucutu encarregou-se de quebrar o craque do São Paulo, tirando-o do jogo com uma entrada criminosa. O garoto saiu de campo aos prantos, imagem que a televisão captou em close. Foi a senha para as cornetas da imprensa amiga do doutor Jordão soarem impiedosas: pipoqueiro.
No jargão do futebol brazuca, com seu peculiar ethos do tempo das cavernas, este é o pior xingamento: ‘pipoca’ é o jogador que salta fugindo da pancada, evitando a bola dividida com o zagueiro-açougueiro. Um crime de lesa-pátria. A reapresentação dos jogadores se daria logo após as festas de fim de ano numa cidade do interior, de modo a evitar os protestos da torcida, furiosa com a desclassificação. Aqui, os interesses do dirigente e do líder de facção confluíam: o plano era levar meia dúzia de arruaceiros para receber os atletas com protestos, de preferência, atirando pipocas na cara do pobre Kelson.
O crime perfeito: a imprensa daria ampla repercussão, o rótulo de ‘amarelão’ grudaria no rapaz, e então, fazia-se a venda às pressas para um clube que o compraria com deságio ― e todos levariam o seu por fora, claro. Na ponta européia encontrava-se o Milan, presidido pelo empresário e político Silvio Berlusconi, que arremataria a jóia por, declarados, oito milhões de dólares. Amigo do cavaliere, o doutor Jordão engordaria o colchão da sua já confortável velhice, enquanto Metaleiro ganharia o financiamento necessário para dar o start na sua própria organizada, livrando-se da dependência dos outros líderes de torcida.
Por isso é que Metaleiro se desesperava, ali, sentado naquele posto de gasolina de playbas à espera dos companheiros que tinham ido na captura de uma porra de um borracheiro. Não podia vacilar. Tinha porque tinha de chegar na casa do doutor Jordão e pegar as passagens mais a grana do alojamento. Senão, como é que iam tocaiar a delegação quando chegasse na cidadezinha onde o tricolaço ia fazer a pré-temporada? Um atraso de horas, e a hora do réveillon chegando.
Que merda, onde que tão esse Velho e o Birinja que não chegam? É o cu da cobra, daqui a pouco esses mané vão inventar de encher a lata... hmm, tá chegando meia noite, daí fodeu a biela, ninguém mais vai prestar pra nada. Ah, mas não tem erro não, seja a hora que for, vou colar lá na casa do cartolão e catar minhas paradas! Desculpa aí Kelson, nada contra você irmãozinho, mas se eu não adiantar meu lado, quem é que vai?

sábado, 13 de abril de 2013

O último fim de mundo do milênio (VII)



NATASHA & PROFESSOR CAMARINHA 20:29

            Eléos e Phóbos, piedade e terror.
Tanto quanto a tragédia grega encenou os muitos tons e sentidos da dor, a arte cristã se dedicou a representar a paixão de Cristo, ou seja, a história do martírio: a dor extrema do Filho de Deus. Purgação e expiação das paixões. Identificação e compaixão. Paixão mista em que o prazer nasce da contemplação dos limites do ser humano, da visão terrífica da morte.
Sacrifício ritual, culto dos mortos, a arte nunca deixou de ser um exorcismo do incomensurável poder de Tânatos; na arte, reencontramos a dor na sua vertente sublime, descobrimos que a beleza pode ser terrível. Respeitável pai de família, pesquisador nível A da Capes e figura de proa da intelligentsia tupiniquim, o professor Camarinha mantém oculto um lado da sua vida. Ele é um esteta da dor.
O professor descobriu o segredo dos torturadores de todos os tempos e lugares.
            O pensamento clássico segrega mente e corpo em universos paralelos; quando dizemos distraidamente ‘meu nariz’, ou ‘minha perna’, salta aos olhos (e aos ouvidos) a exterioridade do ‘eu’ que fala na relação com o ‘seu’ corpo. Eu não é um corpo, eu é um outro. Etc., etc..
            Ora, o objetivo primeiro e último de qualquer suplício é devolver este eu onipotente ao corpo em agonia; derrubar a dignidade da primeira pessoa do singular, reduzindo-a a um feixe excretor de sensações. Carne e medo.
            Prosaico silogismo do carrasco: você é este corpo, este corpo me pertence; logo, você me pertence. Cequedê. O caroço desta verdade quebra a espinha ao mais durão dos idealistas. Memento mori pra ninguém botar defeito.
            A um sujeito destituído em sua palavra, corresponde um corpo despido do seu próprio controle, que não pertence mais a si mesmo, transformado em objeto nas mãos perversas de um outro cujo poder não tem limites. Nesta experiência de ultrapassagem e redenção, de cruzamento de fronteiras e concomitante restabelecimento de padrões, Natasha é mestra em extorquir dele as verdades recalcadas, em alçá-lo aos cumes gêmeos do sofrimento gozoso.
            O interfone tocou. Chegara, finalmente. Abriu a porta para ela já vestido com o pijama de estampas infantis; os membros peludos e a pele do professor contrastavam com a tez mais clara da careca.
            “Hãm, oi, boa noite, deixe-me ajudar com o casaco... Aii!!”, ainda no vestíbulo, mas já com a porta fechada, levou a primeira chicotada da noite.
            “Quem deu autorização pra tocar em mim?”, Natasha já tinha incorporado, usava a máscara da Mulher-Gato, os longos cabelos castanhos a lhe cobrir os ombros. “Pega a minha mala. Leva pra lá. Só abre quando eu mandar”.
            Desfez-se da capa de vinil sobre uma poltrona. Relanceou os olhos pelas paredes da sala cobertas por prateleiras de livros. Caixas de som tocavam ‘No Castelo do Rei da Montanha’ do Peer Gynt. A filmadora a postos sobre um tripé. Conferiu o enquadramento da câmera na telinha. Perfeito.
            “Já posso abrir?”
            “Não ouviu o que eu falei?”, e, pimba!, sapecou-lhe o reio de novo, nos quartos. Natasha apercebeu-se satisfeita da ereção que já lhe estufava o pijaminha.
            Devidamente autorizado pela patroa, o escravo pôde, enfim, abrir a maleta, de onde foi saindo uma cornucópia de couro e metal: correntes, arreios, coleiras, uma chibata, uma máscara de gás emborrachada, algemas de zamak cromado; e o principal acessório, o Bernardão.
            “Vamos passear agora”, puxou-o pela coleira, dirigindo-se para a cozinha, “Mas vou avisando: toda e qualquer desobediência ou mau comportamento serão severamente castigados. Responde!”, deu-lhe um repelão brutal na coleira.
            “S-sim senhora!”
            Natasha pôs a água para esquentar no microondas. Cinco minutos.
            “Ah, não é possível, babando na minha bota!”, desfechou-lhe uma saraivada de golpes com o chicote de nove tiras. O servo se contorcia gemendo excitado, acariciava o membro intumescido.
            Levou-o para a sala aos pontapés.
            “Já pro castigo! Mau, muito mau menino, agora não pode dizer que não avisei... Vira pra parede, já! Está de castigo até eu mandar!”
            “Na-ãao, o castigo não, perdoa mamãezinha, o castigo não...”
            “Você errou, e sabe que tem de ser punido para o seu próprio bem. Isso dói muito mais em mim que em você...”, ouviu o sinal do microondas, voltou para a cozinha arrastando a mala de rodinhas metalizada. As botas de salto alto ressoavam no assoalho de tábuas corridas.
            Natasha preparou com cuidado o Bernardão: um consolo avantajado, em borracha crua, calibroso, e equipado de êmbolo. A água deveria estar tépida, nunca quente demais.
            “Abaixa essas calças, pirralho atrevido, chegou a hora do enema! Vamos limpar toda a sua sujeira, até a de dentro”, ela se movia com os passos elásticos de pantera, a roupa de suplex delineando a silhueta sinuosa, o ameaçador rabo-de-tatu preso na cintura.
            “Mas... já? O Bernardão agora não, nem tô com a tripa presa... eu fiz cocô direitinho como a senhora gosta, por favor, agora não.”
            “E eu te perguntei alguma coisa, moleque?”, Splaat, estalou uma chibatada nas nádegas do professor. Ajustou algemas nos pulsos e tornozelos dele, arriou a parte inferior do pijama, untando-lhe o ânus com gel de xilocaína. Introduziu o dildo cuidadosamente.
            “Unff!! Aiii, pára com isso, não faz isso comigo, assim, hmm... pára...”
            “Isso, este é o meu escravo, assim que eu gosto... vai confessa, fala pra mim todas as coisas feias que andou fazendo”, a dominatrix esvaziou o êmbolo do Bernardão, injetando dois litros de soro morno nos intestinos do masoca. Sentia estar se aproximando de alguma coisa nova com o súdito, um novo limite ia ser quebrado naquela noite; a excitação que ele apresentava era maior do que o habitual.
            Descalçou as botas. Tirou as meias.
            “Hmm, ai, que duas jóias mais lindas, que dedinhos! Posso...?”, ele pedia, mas já se atirava sobre os pés da tirana, lambendo-os, sôfrego.
            “Você sabe o preço, né? Sabe ou não sabe? Responde!”
“S-sei sim senhora”.
“Lambe primeiro as solas dos meus sapatos, já!”
            Chegaram na parte da cena que Natasha mais gostava.
Calçou as suas pièces de résistance: sandálias de salto alto; simplesmente duas jeweled-fish de Giuseppe Zanotti. Usando algemas com afastador, prendeu-o deitado de bruços a uma coluna da sala. Caminhava sobre as costas do sujeito, perfurando-lhe a camisa com o salto afiado no calcanhar. Pequenos botões carmim emergiam no tecido.
Vestiu o rosto dele com a máscara de gases. A vítima gritava, choramingando palavrões abafados pelo bocal de borracha amarela.
“Grommfbb, ca, ca...”
“O que é que você falou? Mais alto, quero ouvir!”
A hora da verdade.
A fronteira da qual recuara até então. Trocou a posição das algemas no poste de suplício, virou-o de barriga para cima. Era necessário que visse tudo. Afastou as pernas sobre o peito dele, abriu um zíper no macacão de suplex que atravessava o cavalo da calça da frente ao cóccix. Concentrou-se. Em breve, um bem formado tolete se depositava sobre a barriga do escravo.
O professor Camarinha arquejava em êxtase. Manchas úmidas se alastravam nos calções do pijama.

domingo, 7 de abril de 2013

O último fim de mundo do milênio (VI)






OSSADA & REINALDO 20:02

            A última balada do milênio corria perigo.
            A casa do amigo ficava próxima da sua, na rotatória do Sunrise Village; nem trocou de roupa, foi só o tempo de estacionar a moto, largar a mochila, bolar o back e já batia na porta do quarto de Reinaldo. Ossada estava sem planos e sem grana para cair na night; uma reunião do alto comando era necessária para restabelecer a estratégia, já que os objetivos eram cristalinos: erva, perva e cerva.
            “E aí pé-de-pano, ah não, ainda de pijama?! Vai ver que a Cinderela precisa que a minha rola lhe dê o beijo do verdadeiro amor pra despertar...”, embora o desânimo do parceiro fosse previsível, Ossada não aceitava derrotismos mesmo com perspectivas tão sombrias.
            “Cê viu a presepa que a minha mãe tá armando? Sinistro, mano, jantar com um monte de gente que eu não conheço, ou que conheço o bastante pra não gostar”, sentou-se apoiado no espaldar da cama vendo o parceiro laricado se entupir de filhoses roubadas à cozinha da mãe, “Meu, que porra é essa na tua calça? Tá zoado... vixe, a perna tem uma queimadura”.
            “Ah, isso?, foi uns rosca lá na avenida, me jogaram um morteiro; mas dei o troco: esguichei refri no parabrisa da barca dos maluco, foi mó louco, apavorei, dei petê nos malaquia...”, Ossada enfiou o tapete na fresta inferior da porta do quarto e acendeu um baseado grosso como uma vela de sete dias, de deixar rastafári envergonhado: jamaican size. Puxou uma cadeira para si. “Hahaha, se fuderam, mas e aí nóis, onde vamos festar essa noite? Mano, cê sabe que eu tenho uns lances, tô sentindo que hoje é dia, vamo dar uma, meu broder, vamo me-ter, tá ligado?, me-ter, furunfar, fincar a estaca, descarregar a pistola, dar um picote, arreganhar a chapeleta, escalavrar a piça, sacudir o joão-bobo, esganar a gata, descabelar o palhaço, passar o rodo, descascar o palmito, maltratar o pirata, arregaçar o freio, desentortar o toucinho, estrunchar a alcachofra, apontar o lápis, ralar o bilau... muleque, hoje eu tô a fim de botar uma roupa de couro na estrovenga... couro de buceta, copiou?”
            Acompanhava as palavras de manejos que se pretendiam eróticos, balançando os quadris em sintonia com os braços; Ossada simulava uma trepada com o ar, ‘sensualizava’, como ele mesmo dizia, mas tudo que conseguia era a mímica de uma lombriga lúbrica e desconjuntada tendo um ataque epilético. O grandalhão não conseguia ficar parado meio minuto, um mapa do Chile com déficit de atenção e hiperatividade; nem bem terminou sua dança do acasalamento das enguias pré-históricas, e já estava vasculhando o quarto. Atrás sabe-se lá do quê.
            “Aí garanhão, se liga na facada que tão as balada: Flag, cento e vinte cinco pilas, bebidas à parte; Gallery, cento e oitenta; Maksoud, cenzão; Avenida, sessentinha com consumação; Disco Fever, vintinho sem convite, quinze com...”, Reinaldo se interrompeu, deu um pega na charuleta. “Na boa, Ossada, tamo sem um tusto, vamo acabar é fazendo justiça com as próprias mãos...”
            “Caralho, mano, deve ser por isso que as mulher não larga do teu pé: é esse seu otimismo que contagia! Não confia no xaveco, mané? Mulher se ganha também de bolso vazio, mano”.
            “Não é isso, porra, é que precisa um pouco de logística, ter um esquema”.
            “Rei, tu é um gênio... ao contrário! O esquema á papo reto, tira o mata-burro dos neurônio: vamo pro Réveillon da Paulista, arrastamo as mina pra cá, e aí meninão, é só correr pro abraço...”, lembrou dos pais que tinham ido mergulhar no Caribe com a irmãzinha cedefe, largando ele aqui sem um puto e a chave do carro cassada. Só porque tinha levado chumbo na escola de novo ― vinte anos e ainda no colegial! ―, tremenda injustiça.
            “Virada na Paulista com Maurício Manieri, É o Tchan! e Os Travessos?, tô fora, irmão”, só então se deu conta da armadilha, os neurônios finalmente se encontraram num baião de dois, “Ei, pera lá, se vamo na moto, trazemo as mina aonde?”
            “Enxergue a beleza na simplicidade: pegamo o carro da sua mãe, arrastamo as marvada pra minha casa, e bola na rede, broder!”, remexia nos frascos da prateleira, até que achou algo que podia dar barato; no rótulo lia-se: Dry Quik. Deu uma cafungada master.
            “Que cê tá fazendo? Ai, não, é o removedor de pintura dos meus aeromodelos... taquiospa Ossada, tu é bem louco mano!”, agora como é que ia pedir o carro emprestado para a mãe?, ele, chapado, o Ossada, pra lá de Marrakesh, fedendo a oficina de sapateiro.
Foda, viu.
            Ossada era assim, ame-o, ou deixe-o. Coração de ouro, mas um baita garoto-enxaqueca. Sempre causando. Antes de se perder completamente numa cambiante névoa púrpura, a mente do tresloucado rodopiou pelo quarto girando pensamentos e emoções num vasto carretel sem eixo nem direção.
Meus pais querem que eu estude pra quê? Pra ficar igual os bostas que moram neste manicômio de bacana? Quando um filha da puta de BMW arrebentou o pai do Reinaldo, o que fizeram? Garantiram o emprego pra mãe dele; pronto, tudo resolvido. Nunca uma pergunta, nunca uma palavra de consolo pra família, zero solidariedade. Então é isso?, virar burguês, andar de camisa limpinha e cueca suja?
            Odiava aquela situação, pagar de babá de chapadão. O pobre menino rico. Apagou o bamba. Ligou um pequeno ventilador para desbaratinar o cheirão de marufo.
Não tinha alternativa, precisava esperar a onda passar antes de poder botar o nariz para fora do quarto. Os convidados da mãe chegavam. Cabeça baixa, escanchado na cadeira como um trapo sujo, o amigo murmurava absurdos; deitou-o na sua cama. Vestiu-se por falta do que fazer.
Era incompreensível. Ossada, filho de milionário, era tão fudido quanto ele, o filho dos proleta nordestino. Olhou para o alemão doidão espremido na cama curta; na teoria, tinha tudo para odiá-lo.
Era o seu melhor, e único, amigo.