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domingo, 28 de fevereiro de 2016

Red Star (2)



O advento do terrorismo islâmico e a última (mas não derradeira) grande crise econômica mundial sacudiram de vez a bolha de tranqüilidade do mundo ocidental: batalhões de experts, coortes de políticos conservadores e xenófobos de todos os calibres emergiram das sombras para vociferar panfletos apocalípticos e anunciar sem rodeios que as duramente conquistadas liberdades e direitos civis precisam ser limitados de forma a lidar com as novas ameaças à segurança coletiva. Um aplicativo capaz de identificar potenciais conspiradores ou indivíduos procurados pelas autoridades de repente virou o Santo Graal da vigilância filmada.
Neste quadro de paranóia globalizada o projeto de Jaqueline ganhou importância, sendo alçado ao nível top de prioridade. Ninguém ousa questionar os seus métodos. Não é que se engane, está plenamente consciente de que o seu trabalho passou a ser artificialmente valorizado e por isso mesmo acredita que não terá oportunidade melhor para implementar seus objetivos profissionais. Bem como as taras pessoais. Por exemplo, neste momento ela traça a rota de Paco a fim de verificar se ele realmente vai direto do serviço pra casa como disse na mensagem lacônica enviada há pouco. Algo fez o seu alarme interno soar.
É um homem de hábitos, eles sempre tomam um café quando ele sai e ela entra no plantão da companhia de bisbilhotice pública. Brincadeira de criança pra Jaque: digita seu log in de acesso e faz uma busca nos registros dos semáforos inteligentes da cidade com o número da placa do carro que conhece tão bem. Batata. Os dados indicam que o veículo do amante não tomou nenhuma das autopistas possíveis com destino a Los Jinetes (A-4 ou SE-40), ao contrário, surge a localização atual na Calle Placentines. Consegue a imagem da rua em tempo real na tela, a tempo de ver o Seat Ibiza parar em frente ao número 21. Azahar Bar & Copas.
― Filho da puta, bem aqui ao lado! Aposto que é outra mulher, pro canalha não é suficiente ter duas.
Ainda assim quer ter plena certeza das suas suspeitas, resolve testar seu software nas câmeras da Placentines: digitaliza uma foto de Paco e deixa a filmagem rodando. Tão logo ele saia do bar o sistema vai disparar o alarme anunciando a identificação do suspeito, e então ela vai descobrir se a suposta acompanhante é ou não a esposa do calhorda. Sente uma pontada dolorosa no coração, o Azahar é um pequeno bar turístico, fora do roteiro dos amigos e conhecidos dele. Levou-a lá quando se descobriram apaixonados, justamente pela discrição e aconchego do local.
Acostumou-se a ser a outra, a ponta oculta do triângulo amoroso, mas ser corna de uma terceira mulher era demais pra ela. Namorar um homem casado não lhe parecia ser mais do que um incômodo conveniente, o tipo de relacionamento sem muita cobrança nem o controle habitual do macho latino. Tipo da situação confortável para ambas as partes. Mas acontece que o boçal vivia protestando seu grande amor por ela, ameaçando separar-se a cada conversa pós-coito entre lençóis, vinho e cigarros. Imbecil, cochambroso.
Pra se distrair enquanto espera, realiza suas tarefas rotineiras verificando os controles e os avisos habituais das máquinas. Àquela hora não há mais ninguém acordado no décimo sétimo andar, até o guarda noturno deixou a ronda pra tirar um cochilo. Sozinha como sempre, como tanto gosta. Há uma placidez quieta na cidadela de computadores, telas e consoles de última geração à sua volta, uma ilha de tranqüilidade alheia ao bulício dos que aproveitam a noite quente do sábado. Somente os solitários sabem apreciar a beleza que o silêncio encapsula.
― Ahá, soam as trombetas! Vamos ver o que nos reserva a noite... hmm, aproximar foco, aqui está: ele saindo do bar e... acompanhado! Vamos ver quem é ela, não é a esposa... uma loira aguada. Grande bufão, corno de merda!
Novamente ela aciona os radares detectores de velocidade para lhe informarem o trajeto do carro. É como um vôo de pirilampo: acende e apaga, acende e apaga, mas o rastro de luz vai indicando o caminho. Por sorte há registro de imagem na rua onde param, anota o endereço. O casal sobe um pequeno lance de escadas, abraçados, desaparecendo no edifício residencial. Uma luz se acende no quinto andar, depois se apaga novamente.


domingo, 21 de fevereiro de 2016

Red Star (1)



            O sol de Sevilha é o olho excessivo de Deus sufocando toda a terra da Andaluzia nas suas cores escaldantes e derramadas. Jaqueline desceu na estação de metrô Puerta de Jerez e vai a pé para o edifício Red Star, ela trabalha no décimo sétimo andar de onde se avistam as torres do Real Alcázar, as curvas do Guadalquivir e as magníficas agulhas góticas da Catedral de Sevilha. Aproveita o resto de luminosidade do longo dia de verão para caminhar antes de pegar o turno da noite.
            Enquanto se desloca sem pressa pela calle San Fernando hesita entre um capuccino no Starbucks e um sorvete na Häagen-Dazs, as ruas cheias de turistas convidam a aproveitar os últimos dias de férias. Decide ir direto pro trabalho sem escalas depois de receber uma mensagem de Paco, mais uma vez ele precisava voltar mais cedo pra casa. Ela não gosta dessa coisa de ficar sozinha nos cafés, embora prefira trabalhar na sua estação sem muita gente por perto.
            Paco talvez gostasse de dar um passo a mais na relação deles, mas Jaqueline cortou logo esse papo. Sexo e amizade, ponto. Trabalham juntos, já está bem bom no quesito intimidade. Além do mais, ele é casado e qualquer alteração desse status quo seria uma dor de cabeça quilométrica: separação, chororô, explicações aos amigos, conversa “adulta” com a ex magoada, enfim, um festival de invasão alheia na sua vida. Tudo que ela lutou pra manter longe de si.
            Tudo acontece sob o céu tórrido da Espanha, de modo algum colorido e duro como se pinta, mas ensolarado e de uma claridade ofuscante ― mole e turva ―, por vezes irreal, pois o brilho da luz e a intensidade do calor evocam a liberdade dos sentidos, mais exatamente a umidade mole da carne. Paco é andaluz até à medula, capaz de passar a eternidade numa tasca barulhenta cheia de amigos, papeando em torno de gordas azeitonas besuntadas em óleo de oliva, lulas em rodelas, fritadas de ovos, fatias de presunto e copos de Jerez até as horas da noite não agüentarem tanta conversa.
            ― Olá Jaque, chegando mais cedo pra se enfurnar na caverna?
― Salve Juanfran. A noite está do jeito que você gosta, cheia de turistas pra azarar. Vai lá soltar seu irresistível charme ibérico pras americanas sedentas de cor local.
― Bom, pelo menos temos isso: o turismo das gringas taradas. Esta cidade não acontece nada nunca, se não fosse pelas corridas de touros e os batedores de carteiras, morríamos todos de tédio.
― Eu acho melhor assim, aliás, nós estamos aqui pra isso.
Especialista em segurança de dados, Jaque se instala na “caverna”, como os colegas apelidaram a sala de controle das câmeras de vigilância pública da cidade de Sevilha. Atualmente trabalha na implementação do programa de reconhecimento de rostos ligado ao G.E.O., grupo de operações especiais da polícia espanhola, em cooperação com a Interpol. O objetivo é tornar a cidade completamente segura e servir de modelo pra comunidade européia: taxa de resolução de crimes acima de 90 %. Cercada de telas, ela é feliz em seu bunker.