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sábado, 31 de outubro de 2015

como ser feliz sem o autoengano (carta anônima)








se existe uma verdade
é a de que desistimos
de quase tudo


seguimos sonhando entre os rochedos
do tédio e desespero


pequenos retratos da vida
flutuam diante dos dias
como promessas
fantasmas


que caçamos quando crianças
nas frestas das portas


nunca prendemos a poeira
luminosa


mas nunca perdemos mais
que poesia
e portas


domingo, 25 de outubro de 2015

os culpáveis (2)




            ― Pai, você acha que o Dingo é feliz?
            ― Bem, não sei dizer com certeza se ele é feliz, mas uma coisa é certa, essa bola de pêlos tem de mão beijada tudo que os outros correm atrás: casa, comida, cuidados... os caras do zoológico até lhe arrumam namoradas ― Ava, futura agente da CIA, habitualmente me interroga com a sanha de um juiz da Lava Jato, por sorte, tinha um trabalho escolar para distraí-la, daí a visita ao Dingo no zoológico, onde vamos parar enchendo a cabeça de crianças de 6 anos com ecoapocalipses e a reprodução desses bichos de pelúcia gigantes?, a baixinha é osso, melhor erguer a guarda, peguei uma mãozada dos Cheetos que minha ex baniu da dieta da menina, deve ser por isso que a criançada hoje é tão ligeira: proíbem a comida trash, mas liberam o computador e a convivência com adultos sem noção.
            ― Só existem mais 1864 ursos pandas no mundo todo. Eu ia achar muito triste ser uma das últimas pessoas da Terra.
            ― Ok, filha, sei que não é culpa sua, mas os seres humanos não têm feito um grande serviço neste planeta, talvez o mundo fosse um lugar melhor cheio de ursinhos fófis em vez de gente.
            ― A mamãe diz que você é um bicho em extinção, que todas as suas namoradas acabam te odiando e que pagam pra você escrever mal. Você não aprendeu a escrever?
            ― Ela disse isso, foi? Olha, a escrever eu até aprendi, a ler também, o que nunca aprendi foi a pensar, a organizar as idéias e a vida, vai ver sou uma daquelas pessoas que deviam ter vindo panda, talvez assim, ao contrário das minhas namoradas, você gostasse de mim pra sempre.
            ― Mas eu sempre vou gostar de você, mesmo a mamãe e a vovó falando ― encheu a boca de salgadinhos ― pra mim você é o Homem Panda: grande, peludo e engraçado.
― Hahaha, a pança do Shrek e do Homer eu já tenho, só faltava o Kung Fu Panda...
― Por que as suas namoradas mudam toda hora, papai?
― Certo, Mata Hari, não se pode esconder nada de você por muito tempo, acontece com elas, e um dia vai acontecer com você também: meninas gostam de brincar de princesa e adoram unicórnios e bichos fofinhos, mas um dia descobrem que a floresta tá cheia de lobos maus, e nessa hora é melhor ter do seu lado um caçador forte que não tenha medo de dar uma machadada na barriga do lobo, as moças gostam do Homem Panda, mas depois se cansam do ursão preguiçoso que passa o dia dando cambalhotas e roendo bambu.
― Sabia que quando nascem gêmeos as mães só cuidam de um dos filhotes? ― Ava fazia sua parada tradicional na frente do mico-leão de cara vermelha.
― Quem, os micos?
― Não, os pandas. Na Olimpíada, a China vai mandar um casal deles pro zoológico do Rio de Janeiro. Você me leva pra ver?
― Claro, Ava, até lá acho que consigo ganhar na loteria, ou ainda melhor neste caso, no jogo do bicho.
― Verdade que tem um mendigo que mora com você?
― Sabe o quê?, sua mãe tem um jeito de dizer as coisas que torna elas piores do que são, na verdade o Tomate é um amigo, ele não tem família e tá passando uns tempos lá no meu cafofo, coitado, deu azar na vida, teve um acidente e bateu a cabeça, ficou meses no hospital e quando voltou esqueceu quase tudo que sabia, o que você tem que dizer pra sua mãe é que ontem chegou um gringo lá em casa, o Uzo, um americano que vai arrumar trabalho pro papai, assim eu pago a sua escola e a mamãe não vai precisar praticar a alienação parental com tanta freqüência.
― O Uzo é um urso?
― Hehe, quase isso, só esqueceram de pintar as manchas brancas nele pra ser um panda, mas é um cara muito importante, e também raro: um jornalista empregado, não esqueça de contar isso pra mamis porque senão ela manda o ursitcho vegano do seu pai pruma jaula cheia de ursões ferozes.
            ― O que é alienação paredal?
            

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

os culpáveis (1)




            Ou seja, bem feitas as contas, na real mesmo à vera, as coisas são sempre mais parecidas que complicadas, é como aquele caso da faxineira presa por roubar um bombom trufado da mesa do delegado, toda história tem pelo menos dois lados: o da trufa e o de fora, pois bem, na cobertura de chocolate da minha vida corria a parada com o jornalista americano que fazia surf no sofá do meu honorável muquifo, mais sofá do que surf é verdade, mas ainda assim era um contato internacional, um cara com coluna fixa na Transmetropolitan, “a” revista cybermod dos isteites, pouca merda não é, convenhamos, nem pouco peso: Uzodima Iweala é, ou era, um afroamericano de trocentos quilos, do quais uns cinqüenta só em dreads dourados escorrendo da cabeça oval, infalivelmente vestido como um babalorixá do Malaui e responsável pela quebra da minha cama um ano antes quando veio cobrir a Copa das Copas, vou morrer achando que o enrosco da faxineira seria bem menor se não fosse a trufa.
            Vamos tentar organizar a quizumba, já perdi a conta dos editores que surtaram tentando organizar a diarréia hegeliana de orações subordinadas nos textos com distúrbio de atenção que me sustentam no nível do Bolsa Família (tenho (tinha) um frila sem nota, razoavelmente fixo, numa revista de viagens, mas isso não vem ao caso agora), pause, volta o filme: cinco minutos antes o telefone de casa tocou, pânico, vertigem, procrastinação, quem ainda liga pra fixo neste planeta?, só telemarketing, agiota, ou parente com notícia de morte, quem na família estava no bico do corvo?, bem, tenho uma tia em no interior com erisipela ― dá pra morrer de erisipela?, antes de conseguir dar um googlada, o telefone tocou pela vigésima vez e então achei que três da tarde de um sábado é uma hora como outra qualquer pra alguém te acordar e foder seu dia, o partido do autoengano no meu pensamento nublado insistia em apostar numa ex que apagou meu contato, esqueceu o quanto me odiava e acontecia estar precisando desesperadamente de um pau amigo.
            ― Hello, sou eu, Uzodima. Tava cagando, yo?
            ― Fala, grande Uzo, isso é hora de quase me matar do coração? Já tava vendo minha tia morta em Araras...
            ― Arrarras? Tia morta? What a fuck... cheirando de novo, bro?
            ― Esquece, a fita é longa, ningué morre de erisipela, mas fala, cara, que horas são aí agora?
            ― Doze minutos... passado três PM.
            ― Puxa, a hora daí tá que nem aqui: quinze e pouco.
            ― Claro, porra, estou em frente seu prédio!
            ― Caraca, mano, não me avisou por quê?
            ― Porque você não responde cell phone ou e-mail.
            Uzo tinha razão, passei as últimas semanas evitando o mundo depois de assinar a reportagem de uma das muitas viagens que nunca fiz, numa barriga em que não fui o menor dos Inocêncios, novo organizador dos fatos: a edição especial sobre o Tahiti da revista Trips and Travels ostentou uma deliciosa crônica nas areias brancas e águas azul turquesa de... Turks and Caicos, grande merda, Caribe, Polinésia, quantas pessoas neste país sabem a diferença?, os caras não me pagam nem uma diária na Cidade Ossian e ainda querem que eu ache inspiração no Parque da Luz pra escrever sobre lugares estilosos munido de encartes coloridos e prazos exíguos, acabou que grana não vi e os caras só não me demitiram porque nem contrato havia, vida de pejota é andar no arame, camelar o perrengue pra sempre, computando os prejuízos dei por perdida a verba do aluguel (já atrasado em 3 meses) e a pensão da ex (também atrasada), ou melhor, da minha filha Ava, com ela me entendo numa ida ao zoológico, mas a mãe não vai perder a chance de me mandar pruma cadeia onde um bando de meliantes faria o seu melhor pra transformar meu reto num cano de 3 polegadas, como são as coisas: as vigas mestras da maçonaria da minha existência ameaçavam desabar, e, de repente, vindo do Norte maravilha, lá estava a solução dos meus problemas: um gringo recheado das doletas que me faltavam, trabalho e liberdade, isso é a América, e também o lema de Auschwitz, acho, vou dar uma googlada.

            

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

vida de espião




desço a rua no fluxo
de outros flanando em fim de tarde
aceito tudo que não sou
rogo lágrimas à multitude
ao grupo de skatistas furiosos
chego a amar
o mendigo tatuado de mendigo
carrego coisas em mim
que ainda não sei perguntar
a atriz me oferece mangas da cesta que carrega
recuso
ela me dá um guardanapo de papel
escrito a caneta rosa em letra de forma:
"No Brasil, o número de estupros
supera o de homicídios dolosos"
então penso que o estupro começou
há muito tempo
tento ser alguém e estar vivo
esqueci o sentido da vida
e quando o reencontrei não cabia
no biscoito da sorte chinês
acho que já deveria saber que uma coisa
não leva necessariamente à outra
até porque hoje não há mais missões
só nos resta a vida doméstica
li em algum lugar que as pessoas felizes
não se comparam com as outras
nem se culpam pelo que não podem
resolver
o que eu mais queria era ser feliz
sem ser babaca
e morrer um dia despido do
medo
ou daquela sensação de ter desistido
da parte mais importante
de todas