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sábado, 26 de março de 2016

Red Star (6)



Carregaram os pertences e as compras no confortável utilitário de Lucí e saíram cedo no contrafluxo da quinta feira, teriam seu fim de semana prolongado numa agradável propriedade situada nas fraldas da Serra de Cádiz. Elas calcularam que os dois dias surrupiados ao trabalho seriam mais do que suficientes pra levar a cabo seus intentos. Grafites gritavam a poesia multicor dos arredores sevilhanos, paredes e ruas passavam inertes banhadas pela luz oblíqua da manhã. O dia se anunciava esplêndido para uma escapadela rumo ao campo.
Pegaram a Autopista del Sur quase completamente vazia e rodaram tranqüilos conversando amenidades. Sentada no banco de trás, Jaque se viu comentando a última partida dos rojiblancos, uma sova impiedosa do Real Madrid: quatro a zero, com direito a show particular do craque Cristiano Ronaldo. Nas margens da rodovia contemplavam a vegetação dos jarales, arbustos baixos e retorcidos como as mirras espinhentas, e prados verdejantes onde cresciam o cardo, as centáureas e os tufos de esparto. Na altura de Las Cabezas de San Juan saíram à esquerda, fugindo assim do monitoramento dos radares rodoviários cruzando através da cidadezinha para continuar pelo entroncamento de La Virgen de las Cabezas.
A estrada de mão dupla, a pista única margeada por uma fileira de imponentes choupos, apenas interrompida pela pitoresca seqüência de minúsculos povoados com suas casas de pedra, galinhas e cachorros soltos, azinheiras, homens a cavalo ou em carroças, e aldeãs carregando o luto eterno nas roupas escuras. Conforme se avizinhavam da serra, sentiam no ar um misto dos aromas do pinus e do rosmaninho que cobria os campos florindo-os do seu inconcebível tom magenta.
― Galo que não canta, algo tem na garganta ― Lucí provocava o subitamente silencioso convidado.
― O que as palavras podem diante da beleza deste vosso país, minhas caras amigas?
― É verdade. Nunca deixo de me emocionar com os nossos campesinos, é uma mistura de resistência, coragem indômita e religiosidade fanática que fazem tremer os ossos a qualquer um ― da janela, Jaque aproveitava o refresco do vento com ar sonhador.
― E já que sacaram um ditado, também tenho o meu: como sou do campo, aqui me descampo.
― Ah não, Slobodan, de nós você não escapa ― Lucí olhou pelo retrovisor para encontrar o olhar intenso da amiga.
― Hahaha. E quem disse que eu quero escapar? Só louco pra perder uma oportunidade destas.
Finalmente chegaram, uma propriedade isolada a meio caminho entre Prado del Rey e Villamartin no sopé do parque nacional de Cádiz. Piscina, churrasqueira, um pequeno pomar de oliveiras, e até mesmo uma casa de madeira na árvore para crianças, o caminho de pedrisco ladeado por canteiros floridos do amarelo das artemísias levava à casa. Estacionaram o carro na sombra de um magnífico roble cujos ramos gigantescos se dobravam até o chão. Simplesmente perfeito: o lugar era invisível da estrada, enclausurado dentro de um pequeno bosque de freixos e castanheiras.
Instalaram-se no mezanino, Jaque e Lucí dividiram o quarto. Radic aguardou-as descer contemplando uma reprodução sobre a cornija da lareira esculpida em pedra. Lucí resplandecia num vestido de cambraia leve com seus longos cabelos negros cascateando pelos ombros e costas.
― Não falem, por favor, já vi você num quadro, Lucía ― Radic arregalava os olhos muito azuis em êxtase. ― Dona Aña qualquer coisa, de Ramon Casas.
― Acho que lembro dessa pintura, sim. Não sabia que era admirador de arte ― Jaque disfarçava, também comovida com a beleza quase displicente da amiga.
― Verdade, estava observando esse Da Vinci sobre a lareira, até mesmo os esboços dele têm a grandiosidade dos monumentos. Como, aliás, as damas que me acompanham: até num invólucro casual, deslumbram.
― Hahaha, aceito o piropo Radic, mas o talento que você vinha ocultando na verdade é o de galanteador barato ― Lucí sorria, ainda mais sedutora.
Em Da Vinci não se distinguem rascunho e obra, porque a verdadeira realização não está na forma definitiva, mas na série de aproximações para atingi-la. Cada esboço testemunha uma extraordinária batalha com a linguagem, cada linha híspida e nodosa procura a expressão mais rica, mais sutil e precisa ― o espião falava como para si mesmo.




domingo, 20 de março de 2016

Red Star (5)




Às vezes as coisas saem dos trilhos e o mundo parece ter ficado de pernas soltas e pontas afiadas, e é então que podemos abandonar as vias habituais para experimentar caminhos novos e desusados porque tudo parece ter se tornado possível. Era assim que Jaque se sentia naquele primeiro dia quando deixou a casa de Lucía, de repente aquela moça passou a existir na sua vida, e mais de repente ainda, tornou-se amiga, aliada, e finalmente cúmplice num esquema mirabolante de caça a um predadoir sexual. Exatamente aquele que a marcara para sempre.
Tinha tudo pra dar errado. Mas as coisas foram caminhando rapidamente nas semanas subseqüentes, a identificação pelo programa de reconhecimento deu positivo, Slobodan Radic era mesmo o agente especial Kemper Boyd: 96% de certeza. Quem não entendia nada era Paco, a súbita aproximação entre as suas amantes parecia-lhe uma fulminante paixão feminina a empurrá-lo prum escanteio desonroso e mortificante. Talvez ficasse ainda mais alarmado se soubesse que Lucí agora fazia uma corte bastante descarada ao vizinho do terceiro andar, que por sua vez mostrava-e totalmente deslumbrado com a deslumbrante morena de sobrancelhas grossas, literalmente caída do céu.
Nisso no entanto Paco não se enganava de todo: as duas viviam noites febris de maquinações assassinas regadas a álcool, confidências descabeladas e pegação liberada. Como aconteceu depois do primeiro jantar romântico de Lucí com o falso comerciante sérvio. Assim como se nada, depois de 3 garrafas de Torre de Oña, ela lhe falou abertamente das suas preferências sexuais:
― Então, meu amigo, não sei como são essas coisas na sua terra natal, mas aqui costumamos ser diretas nesse particular. Não é que apenas me sinta atraída por homens mais velhos, como você reparou bem, mas tenho também outras fantasias menos... digamos, corriqueiras.
― Ora, ora, este país ensolarado e quente não cessa de me surpreender. Seria muito pedir que fosse ainda mais explícita quanto a essas preferências menos... corriqueiras?
― Não me obrigue a ser vulgar, os homens que deduzem me excitam mais. Vou lhe apresentar uma grande amiga minha, Jaqueline, se gostar dela, poderíamos passar um fim de semana numa casa de campo. Só nós três.
― Parece uma idéia encantadora, um presente do destino nesta minha vida de cigano. Por que não?
O plano seguia de vento em popa: as apresentações transcorreram num clima de descontração no apartamento de Lucí, o gringo estava que não se agüentava em si. Parecia uma criança ganhando presente de Natal em julho. Nem desconfiou quando Jaque lhe foi apresentada, afinal, em vinte anos ela não deixara apenas de ser uma menina para se tornar uma das mais respeitadas engenheiras de segurança da Espanha: ela também havia mudado de nome. Tinha sido a única maneira de continuar estudando, seu nome chegou a sair nos jornais da época.
Era uma justiça histórica, vendeta a ser saboreada na frieza dos pratos longamente aguardados: a menina abusada pelo monstro com imunidade diplomática seria resgatada pela mulher bem sucedida e autoconfiante de hoje. E tudo isto pelas mãos da namorada do ex amante, Lucí, o encontro favorável, a buena dicha lhe sorrindo como o gato de Alice nas curvas irônicas da vida. Também ela havia sido molestada por um tio, e enxergava nesta louca aventura em que se metiam irrevogavelmente a sua revanche contra um abuso tolerado por sua própria família.
Marcaram o fim de semana seguinte numa casa de campo em Villamartin, a 20 km de Sevilha. Lucí trabalhava com imóveis de luxo e conseguiria as chaves de uma propriedade vazia fora das câmeras de vigilância. O plano era ousado: seqüestrariam o canalha, drogavam a bebida dele e o matavam com uma overdose de heroína. O corpo elas jogariam numa represa do Parque Natural de Alcornocales amarrado a coletes de chumbo. Tomaram a precaução de desligar o GPS do carro e dos celulares. Na noite anterior à viagem Jaque teve um sonho.
Estava numa tourada noturna, mas a noite era incrivelmente clara iluminada por uma brilhante estrela vermelha bem próxima da lua. O animal dispara, um meteoro de meia tonelada de carne emergindo do touril, ele rodeia toda a arena como uma ratazana encurralada, bufa, raspa os cascos no chão. Então arremete na direção de um cavaleiro enterrando seus chifres até o crânio no flanco da égua, que galopa absurdamente picadeiro afora, escoiceando, deixando escorrer por entre as pernas uma massa de entranhas de cores abjetas, branco, rosa e cinza-carmim. A bexiga rebentada do animal agonizante lançava uma poça de urina sobre a areia ― tamanha era a tensão nos músculos das pernas e do baixo ventre, ela gozou.



domingo, 6 de março de 2016

Red Star (4)



Ressabiado, Paco deixou as duas sozinhas já que a ironia de Jaqueline tinha fundo e forma de verdade: o álibi dele em casa estava mesmo expirando. Evitou se despedir de Lucía com um beijo dadas as circunstâncias. Tão logo ouviu o elevador sair do andar, esta última quebrou o silêncio e o gelo tentando abreviar qualquer conversa mais constrangedora entre conhecidas que se desconhecem.
― Segundo o Paco me disse, você é uma mulher inteligente e pouco afeita a expansões sentimentais. Por isso não acredite que vá me contar algo sobre vocês que ele já não...
― Sossegue, meu assunto não é esse ― Jaqueline interrompeu a dona da casa com um gesto e se recompôs no sofá. ― O que realmente me interessa é saber sobre o Americano.
― Agora sim, você está me falando uma novidade, que história é essa de americano?
― Olha Lucía, sou muito grata por ter me acolhido em sua casa e tudo mais, realmente não vim aqui pra te encontrar, não era do meu interesse conhecê-la pessoalmente, apenas queria flagrar o nosso, digamos, amigo em comum e pôr fim a um caso amoroso que já só respirava mesmo por aparelhos. Não tive uma hipoglicemia, nem uma enorme comoção ao constatar que o namorado me traía, o que aconteceu foi que na portaria hoje de manhã, Paco, coincidentemente, saiu junto do seu prédio com um homem do meu passado.
― O tal americano?... ― Lucía começava a se interessar verdadeiramente por aquela história.
― Exato. Sou muito boa pra lembrar de rostos, Paco deve ter lhe contado que inclusive estou desenvolvendo um software de segurança especializado nisso. Mas mesmo que não fosse, não tenho nenhuma dúvida sobre a identidade do homem que vi hoje cedo, nunca vou esquecê-lo enquanto estiver viva.
― Caramba, Jaque, desculpe chamá-la assim, é a maneira como o Paco sempre se referiu a você. Não sei se era essa a intenção, mas você está me deixando assustada.
― Pois é, acho que não existe uma maneira sutil de te contar esta história: esse homem me abusou sexualmente quando eu era criança. Sou filha de pai militar, como conseqüência disso, nossa família viveu uma vida errante ao sabor da carreira dele, minha mãe era professora primária, de modo que eu passei a infância sendo mudada de cidade e de casa, mas sempre estudando onde ela dava aulas. Vinte e cinco anos atrás, vivíamos na vila militar de La Línea de la Concepción, que como você sabe é vizinha ao território britânico de Gibraltar, onde há uma base da OTAN. Naquela época estourou a primeira Guerra do Golfo, quando Bush pai começou as incursões americanas no Iraque. A região ficou cheia de tropas e a tensão era quase palpável no ar; esse sujeito, vamos dar-lhe nome: Thomas Kemper Boyd, era um agente secreto da CIA, que por algum motivo ia e vinha da base da OTAN para a base militar espanhola em algum tipo de missão escusa, suponho. Meu pai travou intenso contato com o canalha porque fazia parte do alto comando de logística do exército espanhol, algo de que os americanos dependiam criticamente naquele momento. E foi assim, Lucía, que Mr. Boyd teve acesso a mim.
— Lucí, prefiro que me chame de Lucí, já que você me deixou tratá-la por Jaque. Se acalme um pouco, imagino o quanto é difícil... você aceita um chá?
— Obrigada, estou bem agora. Mas quando o vi saindo do seu prédio, de verdade eu fraquejei. Fiz anos de terapia pra superar o trauma, segui em frente, mas é diferente dar de cara com a pessoa que marcou sua vida com ferro em brasa.
— Jaque, você... conseguiu falar disso com os seus pais na época?
— Sim, chegaram a abrir um inquérito, posteriormente arquivado por falta de provas. É, assim eram as coisas naquela época. Depois meu pai foi transferido pra abafar o caso e a coisa virou apenas um drama familiar que tivemos de remoer em silêncio.
— Inacreditável! Aposto que os ianques molharam a mão de uma meia dúzia dos nossos valorosos generais, e vida que segue.
— Meus pais nunca foram mais os mesmos, se aposentaram cedo, hoje vivem reclusos na província e se recusam até mesmo a votar no conselho da comuna. Quis entrar pro serviço secreto espanhol, mas então ainda não aceitavam mulheres, trabalhar com vigilância foi a maneira que encontrei de ir atrás desse monstro. Na verdade, consegui saber muito pouco dele nesses anos todos, como pode imaginar essas pessoas são bastante protegidas pelos governos aliados.
— Como ele é fisicamente?
— Alto, corpulento, cabelo curto, loiro pra grisalho, por volta dos cinqüenta... levemente estrábico. Lucí, sinceramente, não sei se deveria envolver você nisso.
— Filho de uma reputíssima mãe! O senhor Radic, Jesus, será possível? Bate com a descrição de um morador do terceiro, Slobodan Radic, um homem simpático, fala um bom espanhol com forte sotaque, se apresenta como sérvio representante comercial de empresas de tecnologia. Jaque, e se ele for mesmo o tal Mr. Boyd, o que você quer dele?
— Vingança.



quarta-feira, 2 de março de 2016

Red Star (3)


O táxi parou do outro lado da avenida, Jaqueline desceu e foi sentar-se encostada no Seat amarelo do seu futuro ex amante, o plano era linear: esperaria ele sair do prédio, constatava o flagrante delicto e extirpava Paco da sua vida. Precisava ser assim, a mera apresentação das imagens renderia da parte dele negativas e invencionices que ela não estava disposta a suportar. Quando se tratava de finalizar romances, preferia a técnica do esparadrapo: arrancar com firmeza e de uma vez só. Parcelar a fatura ou procrastinar só aumenta a dor nessas horas.
Passaram-se quarenta minutos, uma eternidade quando se espera sem absolutamente nada pra fazer. Então, quase como um anticlímax, lá vem o Paco saindo do prédio em frente junto com outro morador, cara de satisfeito, cabelos um pouco despenteados. Tudo que ela preparara desaba em instantes, suas pernas fraquejam, o corpo congela subitamente, o coração acelera os batimentos como se fosse explodir no peito, aperta a vista pra poder ver mais claro, reconhecer melhor, mas não consegue manter a consciência por mais tempo. Desmaia.

Acorda deitada num sofá desconhecido de uma sala desconhecida, mas não se levanta. Paco conversa com alguém fora do alcance do seu campo visual, falam sobre ela.
― Então ela estava ali desmaiada do lado do seu carro, assim, como se nada?
― Lucía, acredita em mim, estou tão por fora como você...
― Bom, de qualquer maneira isso ia vir à tona uma hora ou outra.
Relanceou os olhos semiabertos à sua volta, na mesa em frente ao sofá havia um copo, uma garrafa de água e um saleiro. A sua bolsa jazia numa poltrona em veludo verde escuro que completava o jogo de mobiliário da sala decorada em vago estilo art déco. Elevou-se apoiada nos cotovelos pra poder entrar na conversa.
― Quem era ele? ― Jaqueline fitou os dois piscando na contraluz da janela.
― Ele quem? Sou eu, Paco. Jaque, você lembra de alguma coisa antes de apagar?
― É, lembro sim, lembro que você não podia me encontrar depois do trabalho porque precisava ir mais cedo pra casa ― Jaque conseguiu se sentar no sofá e agora conversava melhor com a dupla.
― Hãm, Jaque, esta é a Lucía...
― Olá, Jaqueline, você está na minha casa, o Paco te trouxe da rua. Parece que você estava desmaiada ao lado do carro dele ― Lucía sentou-se na poltrona livre da sala.
― É verdade Lucía, eu estava esperando por ele. Não era minha intenção entrar na sua casa.
― Tudo bem, Jaqueline, você deve ter passado mal com esse calor. Pode ficar aqui até se recuperar, foi só um desmaio.
― Muito obrigada, gentil da sua parte. Mas veja só: nosso amigo Paco está ansioso, imagino que ele precisa voltar correndo pra casa. Já mentiu que fez um plantão duplo ontem, não vai poder ficar muito, né?
― Olha Jaque, nós não precisamos discutir isso agora... ― Paco sentou-se mantendo a bolsa dela sobre o seu colo.
― Não precisamos discutir coisa alguma, até porque não há nada a ser discutido: está cristalinamente claro que você e a Lucía estão juntos, então eu tiro meu time de campo e ponto final. Triângulo eu até agüento, quadrilátero é além das minhas possibilidades.
― Você não precisa ser irônica assim, Jaque ― volta-se pra Lucía ― Meu bem, preciso mesmo ir andando...
― Ok, pode ir, deixa que eu cuido da Jaqueline. Ela já melhorou.
― Sim, Paco, vai pra casa bater cartão. Eu tenho um assunto sério de verdade pra falar com a Lucía, e não é sobre você, garanhão andaluz.