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quarta-feira, 28 de novembro de 2012

acreditar no futuro é bão, o problema é que eu vivo agora




vivemos tempos perigosos
para tudo
principalmente
a utopia

a minha
arte é de amador
de
amar a dor
de
quem
a
m
a

domingo, 25 de novembro de 2012

Volver (parte 3)



De há muito, o advogado Derville Zago Sanchez Alvarinho deixara de se espantar com a exibição crua dos temperamentos e pulsões da fauna humana que desfilava, ao vivo e a coices, diariamente pelo seu escritório; longe da letra organizada dos pareceres e das leis, das petições e contraditórios, as circunstâncias em que se chocam a vida das pessoas sempre lhe pareceram ocorrer sob o signo da bandalha, do caos, da quizumba. No entanto, mesmo a longa janela de puta-velha na profissão não o impedia de sentir uma onda de hesitação sobre como conduzir aquela conversa; precisava entrar com cautela extra no mérito de um caso tão extravagante quanto inusitado. Qualquer deslize, e a maionese podia desandar feio, feio.
Avaliou em silêncio as expressões dos seus interlocutores: Estelamaris, elegantéésima num tailleur vermelho, por mais que se esforçasse, não conseguia parar de arreganhar os olhos a cada par de segundos; Ascânio ostentava o maior derrotismo, parecia empregado em dia de passaralho, amarrou a catadura botando uma tromba de metro e meio; já Aureliano, não se lhe podia adivinhar coisa alguma pela mina, uma vez que as queimaduras haviam transformado a superfície do seu crânio numa paisagem marciana de pele verrumada e lustrosa repuxada para todos os lados, como um chapisco de cimento sem reboco. Para não chocar tanto, o pobre inventara de se embiocar sob um boné e óculos escuros enormes, disfarce tosco que tornava ainda mais triste a sua escalavrada figura.
― Senhores e senhora, gostaria de iniciar esta reunião, sob todos os aspectos inusitada, mencionando que só os chamei para esta tentativa de conciliação após um exame acurado das alegações e documentos do aqui presente, senhor Aureliano Rubião Filho, até recentemente tido como Adauto Schner. Fique bem claro que não haveria sentido em fazê-los passar por tamanho inconveniente... caso contrário seria profundamente leviano da minha parte juntá-los... não houvesse já realizado uma investigação preliminar... além do quê, hãm, o referido senhor Aureliano me passou informações sobre a empresa em que é sócio da senhora Estelamaris, e para a qual advogo, que só ele poderia saber...
― Desculpe doutor... Aureliano, por que só agora, quer dizer, como é possível uma coisa dessas, assim tremenda?... A gente viu, todo mundo viu na televisão; você estava lá... os documentos, os pedaços, o que sobrou de você; eu tive que ir no necrotério reconhecer... aquilo! ― de batom vermelho, tonalidade cherry bomb, a ex-viúva mulher de dois maridos não se continha, escrutinando avidamente o estropício sentado flacidamente na poltrona giratória em frente a ela.
― Pe, pe, pe, peraí doutor, como podemos ter certeza? Não dá pra reconhecer ninguém numa pessoa nestas condições... pode ser qualquer um atrás da máscara. E outra: como é que fica isso, agora ele é sócio da minha mulher? ― Ascânio entrou na conversa, e em breve todos falavam em cima dos outros, um pega-pra-capar danado.
O doutor Derville custou a serenar os atabaques.
― Por favor, por favor. Bem, vamos às explicações devidas, e em seguida ouviremos da boca do putativo falecido sua versão dos fatos. Sobre os pontos que o senhor Ascânio levantou, devo esclarecer os aspectos jurídicos da situação: um simples exame de DNA com material genético dos filhos será suficiente para restabelecer cem por cento a identidade dele; com isto, revoga-se o atestado de óbito, em seguida, Aureliano retoma a posse plena de seus bens, incluindo a parte na sociedade comercial com a... a esposa. Há aqui um detalhe, a segunda união ainda não é legalmente uma união estável: há a coabitação, mas não se completaram dois anos. Como não houve má-fé nem dolo na situação de concubinato, constituindo, portanto, um ato jurídico perfeito, tudo dependerá da conveniência da varoa, isto é, Estelamaris tanto pode dar seqüência ao antigo relacionamento, como ficar com o atual; uma escolha sobre a qual a lei não incide...
― Tetela ― Aureliano se dirigia diretamente à mulher; o silêncio tomou a sala, enquanto Ascânio, com cara de cheque devolvido, parecia ter derretido na cadeira ―, não tive uma vida fácil nestes dois anos, como imagino que também deve ter sido para você e os meninos, mas lutei muito só pensando neste momento. Além das queimaduras, sofri um grave traumatismo craniano; fiquei em coma por meses, passei um ano numa cama de hospital. Longos dias de tédio, confusão mental e fisioterapia para voltar a andar, comer sozinho, falar. Ainda hoje, só me locomovo de muletas; o doutor Derville deixou lá fora... eu pedi, não queria te dar gastura, queria que tudo fosse o menos medonho possível pra você... Mas isto ― retirou os óculos e o boné ―, é o que eu sou hoje: um homem sem rosto, mas com um passado, e uma família. A nossa família... foi pra este Deus que eu rezei, só acreditava nisso, precisava acreditar nisso pra continuar vivendo, pra não ficar louco de vez... desculpa Estela, é difícil... mas preciso voltar naquele dia de horror. Faça o favor doutor...
Com grande senso dramático, o anfitrião abaixou as luzes do escritório e ligou um projetor cuja tela ficava atrás de Aureliano, incorporando desta forma o narrador nas cenas que se desenrolavam às suas costas.
― A imagem apresenta e esconde no mesmo gesto. Tudo isto vocês já viram: ali, o ônibus após chocar-se com uma árvore no acostamento; aqui, o meu carro parando, ligo o pisca alerta, saio... vou ajudar as pessoas que começam a sair de dentro do ônibus; há uma grande confusão em torno... agora o slow motion pra vermos melhor, daí vem este pedaço em que a câmera chicoteia e perde a região iluminada; então, lá está um homem com o meu paletó dentro do carro... e a seguir é que vem a carreta... É uma noção que só me veio bem depois: eu saí do carro e comecei a ajudar os feridos, o primeiro foi um homem, tremendo de medo ou frio, que agasalhei com o meu paletó e levei para dentro do carro, mas isso acontece no lapso em que a pessoa que filmava perde o foco; quando o enquadramento retorna, há um homem no carro com a minha roupa, e é quando vem a porrada final. Este homem, que ninguém duvidou que fosse eu, era Adauto Schner, cuja família cuidou de mim por engano até há pouco tempo.
― Então... você também, vamos dizer, você também tinha uma outra família?... ― os belos olhos da bígama involuntária arregalaram mais alguns milímetros e a voz lhe tremia.
― Esta é a parte mais maluca da história. De uma certa forma, sinto que elas sempre souberam de tudo, apenas precisavam que tivesse acontecido como os jornais noticiaram. Era melhor que o Adauto fosse aquela imagem que ajudava os feridos antes do atropelamento, não o sujeito chorando dentro do carro e do paletó de outro homem: estaria vivo e ainda seria um herói. Por motivos que me escapam, aquela mulher e aquelas duas meninas, que durante dois anos brincaram comigo de sermos os Schner, queriam muito acreditar que aquele homem semi-destruído numa UTI tivesse um dia sido capaz de tomar uma atitude. Fui preparando “mulher” e “filhas” aos poucos; fatalmente chegaria a minha vez e a minha hora de deixá-las, e elas tinham que começar o luto adiado... na verdade, pensando agora, o Adauto passou a incluir um pouco do Aureliano; mas também é verdade que preciso dele: pra que eu volte à vida, ele tem de morrer... bem, de toda maneira, vai ser necessário abrir a minha sepultura, devo a elas um corpo.


terça-feira, 20 de novembro de 2012

as voltas que dá





você é o que você é
quando os outros não estão
olhando


se ninguém está
vendo
você é outro


quando não se ouve mais
você
não é mais nada


você vai rumo ao nada
e ninguém
dele voltará


entre um nada e outro
passa um nome chamado
você


sua vida
seu tempo
seus amigos


só viver não basta
só o amor nesta vida
é um pouquinho mais

que nada

domingo, 18 de novembro de 2012

Volver (parte 2)




Um daqueles acidentes espetaculares, aliás, espetáculo propriamente falando, porque filmado pelo telefone celular de alguém. O vídeo amador ganhou os sites sensacionalistas e a televisão repercutiu por uma semana inteira. As imagens arrepiantes começavam mostrando um ônibus já acidentado (acabara de bater na traseira de um caminhão) no acostamento da rodovia Régis Bittencourt; um carro pára atrás dele e o motorista, trajando um terno escuro, sai em auxílio dos passageiros ― a iluminação é extremamente precária ―; após um lapso de cenas borradas e confusas, vê-se o homem de volta dentro do carro, e então, a tragédia: uma segunda e enorme carreta vem trafegando pelo acostamento, atingindo em cheio o carro e os feridos, arrastando tudo e todos estrondosamente contra o ônibus que explode.
Dezessete mortos. Entre eles, o motorista do carro que havia parado para ajudar, o primeiro marido de Estelamaris, Aureliano. A família horrorizada reconheceu-o imediatamente no telejornal da noite, bem como ao carro, que virou uma sucata de ferro retorcido com a força da colisão. Os funcionários do necrotério abriram uma gaveta onde a viúva em choque se deparou com uma maçaroca carbonizada de carne, ossos e roupas ensangüentadas, nas quais se puderam recuperar incrivelmente intactos os documentos pessoais do falecido ― uma simples viagem de negócios a Curitiba, e mais uma vítima a alimentar as indecentes estatísticas da BR 116. Um velório emocionado, uma família destruída, um enterro de caixão lacrado.
Uma família paranaense, no entanto, teve aparentemente mais sorte: algumas imagens também mostravam um homem em mangas de camisa prestando socorro logo depois do primeiro acidente; era Adauto Schner, curitibano que fazia o caminho de volta para casa dentro do ônibus abalroado. Pelo que se reconstituiu mais tarde, ele teria descido para transportar os feridos para fora quando foi vitimado pelo segundo caminhão; resultado: concussão cerebral, oito meses em coma, além de extensas queimaduras pelo corpo. Adauto teve o rosto desfigurado, razão pela qual ganhou sua peculiar sobrevida.
Conforme se recuperava do coma, percebeu angustiado que não reconhecia os parentes, o que inicialmente se atribuiu à amnésia causada pelo trauma encefálico. Os médicos diziam que a memória lhe voltaria aos poucos, de par com a motricidade perdida no período em que ficara restrito ao leito; os primeiros meses seriam críticos para prever o grau de recuperação que atingiria. Mas o fato que médico algum conseguia lhe explicar era o estranhamento que notava da parte da sua própria família em relação a ele. Percebia claramente os efeitos benéficos que a sua presença, as suas palavras e orientações exerciam sobre a mulher e os filhos; mas não podia evitar o incômodo de uma nota falsa.
Tudo se esclareceu quando, já instalado em casa, viu pela primeira vez as filmagens do acidente. Estava ali claramente, era ele mesmo. Finalmente. Agora se reconhecia, mas não naquele que pensavam que ele era ― eu, sou um outro, pensou “Adauto”. Um tremor percorreu-lhe o ser de alto a baixo, de dentro a fora, parou, absorvido pela extraordinária sensação que acontecia sem controle. Um prazer delicioso lhe invadia os sentidos, algo isolado, diferente, sem nenhum indício sobre a sua origem. O difícil agora seria explicar tudo à nova “família”.
Um mês e meio depois, estava em São Paulo no escritório do seu advogado. O doutor Derville se preparava para dar início a uma das reuniões mais bizarras da sua longa carreira; presentes ao encontro, além dele mesmo, Estelamaris, José Ascânio e Aureliano, recém retornado do mundo dos mortos.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Volver (parte 1)



Estelamaris foi muito criticada, na família e fora dela, por ter refeito a vida no curto espaço de dois anos. Como se houvesse um secreto, mas conhecido por todos, prazo para essas coisas. “É fácinho dar pitaco na vida alheia: cornetar não custa nada, e, quando vem a zica, o mala que deu conselho de graça não se oferece pra pagar a conta. No dos outros é sempre refresco!”, repetia freqüentemente e, mais freqüentemente ainda, pensava que ninguém conhecia os seus perrengues, o quanto tinha de rebolar para pôr dinheiro em casa, administrar funcionários, dar de comer e vestir para dois filhos adolescentes. Falar até papagaio fala, fazer é que são elas; ou melhor, fazer era com ela mesmo, e só.
            Com Aureliano vivo, não chafurdava nessa bagunça sem margens, sentia-se viva, inteira, protegida; havia um sentido para tudo, a casa andava em trilhos e cada um sabia as tarefas que lhe cabiam no organograma familiar. Cada um no seu quadrado, cada coisa no seu lugar, cada nome com a sua coisa; havia comando, havia ordem e obediência. O duro é que isso hoje pertencia a um passado remoto meio irreal, um pouco como as fotos antigas nos deixam a impressão de que antigamente vivia-se em tons foscos e baixa resolução.
            Parecia a versão 2.0 das provações de Jó: Aureliano morrera num acidente de carro; o filho, dando problema na escola e em casa; a filha, mal chegada aos quatorze, atolada no vício sem fundo do consumismo; um fiscal da prefeitura achacando seu comércio e, fechando a lista com destaque, as dificuldades do seu novo companheiro, o Zé Ascânio. Bom moço, o Ascânio: esforçado, caseiro, sem grandes defeitos ou qualidades; o problema era o trampo, estava sempre entre nada e coisa nenhuma, entre um emprego e outro ― aliás, muito mais entre do que dentro, propriamente trabalhando; cada dia mais entregue, mais passivo e desligado diante da batalha da sobrevivência.
E como bolo que se preza não fica sem a cereja no topo, as irmãs correram com o folgado da casa da mãe; de modo que Ascânio se mudou de mala e cuia para o sobrado da Estelamaris em Sapopemba. Pensando bem, foi a partir dali que os filhos dela começaram a desandar.
― Tetela, se tu quer namorar, namore, mas não ponha homem dentro de casa ― era a mãe dela rezingando pela enésima vez ao quadrado.
― Afe mãe!, credo cruz, você tá querendo dizer o quê, que ele pode... bulir com a menina?
― Não. Desse defeito ele falece, é homem respeitador... o que me preocupa é essa moleza, a falta de atitude. Se pudesse escolher como acabar o mundo, ele escolhia barranco, só pra morrer encostado. Você tem ele como um filho mais velho; olhe que quem tem filho grande é elefante...
A verdade é que, lá no seu de profundis, Estela sabia que o segundo marido fazia parte do problema, não da solução ― mas acontece que se arraigara nela o velho brocardo: tá ruim, mas tá bom; ruim com ele, péssimo sem ele. Paradoxais são as razões com que raciocina o coração; não há de ter sido por outro motivo que foi comparado a uma casa de tolerância: cheio de quartos, e sempre cabe mais um puxadinho. Ainda assim, tomou um susto com a conversa que sapeou entre o filho e o padrasto improvisado.
― Posso usar o computador um minuto? Preciso ver uma coisa, é rapidinho... ― o garoto até que começou bem, no sapatinho, como dizem.
― Espera um pouco. Estou terminando aqui... mas pra quê a pressa? De certeza que não é pra fazer o dever de casa; trabalho de escola não é muito seu forte... ― Ascânio já começou entrando de sola na canela, batendo abaixo da linha de cintura; Estelamaris pensou em intervir, porém, aproveitando que não a tinham visto, resolveu apenas escutar.
― Ah, sei... então vamos ver você, qual será a tarefa importantíssima que não pode ser adiada... Hahaha, olha isso, o cara tá numa página de horóscopo, hahaha, e como é que vai o zoológico, leão tá bombando em touro? Fala sério!
― Ê moleque, vê direito como fala comigo, não sou obrigado a aturar você e ficar quieto, não.
― Aí, na boa, você que começou. Além do mais, quem que tá aturando quem? Esta casa é nossa, meu pai que fez; nós já tava aqui, véi, tu que chegou depois.
― Tu tá é folgado demais rapá, sua mãe ralando que nem louca pra quê? Pro meninão ficar causando na balada, tretando na escola... ― Ascânio tinha se levantado e andava de um lado para o outro no living, um olhar de possesso estampado no rosto como ela nunca vira.
― Se você é tão preocupado com ela, por que não ajuda então? Fica aí o dia inteiro sentado nesse computador lendo horóscopo... aí mano, esse papo de astrologia é do tempo que a Terra era quadrada, deixa eu te contar uma novidade: o mundo mudou um pouquinho! ― o rapaz se afastou, fazendo menção de dirigir-se para a cozinha.
O outro atravessou-lhe o caminho.
― Tá se achando, né? Um moleque que nem barba na cara tem direito, quer tirar onda e não sabe tchongas; é bem do signo de gêmeos, essa sua superficialidade...
― Vê se me entende: o Sol não gira em volta da Terra, as estrelas e os planetas não andam em volta de você. Tudo gira em torno de alguma coisa no universo, tudo se move, inclusive o universo; o único ponto parado nisso tudo é você: parado no tempo e no espaço.
Além da queda, Ascânio não ia suportar o coice. Agarrou o menino pelo braço, torceu-o, e rosnou-lhe entre dentes:
― Aí pirralho, cê tá me gastando. Parou, caralho! Tu fica bem pianinho, senão vai tomar um pé-de-orelha agora mesmo.
Ela viu quando o filho amansou, e também escutou suas últimas palavras ― É só mais um ano, no máximo.
― Só mais um ano o quê, moleque? ― por mais que ele insistisse, agora o enteado se fechara em copas, paus e espadas.
Mas Estelamaris entendeu perfeitamente o recado: dentro de um ano, ambos estariam igualados em força física. Nada como ter problemas pré-agendados.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A Nuvem e o Sol (epílogo)



― Se contasse toda a verdade acerca da minha vida, ninguém iria acreditar ― disse certa vez, e ela realmente se calou; não fosse pela coincidência de ter “vivido” em sua casa, de a ter servido na pele da coitada da Jeannette, também eu não acreditaria em madame.
            Este é um ponto relevante. Há quem comece a vida em berço de ouro e termine em maus lençóis, Françoise D’Aubigné, ao contrário, nasceu plebeiamente numa prisão e morreu no fausto de um castelo, alçada à nobreza e casada com um dos reis mais poderosos da história. Dentre os vários profissionais que consultei durante meu período de crise, os psicanalistas discordaram em tudo sobre as minhas dificuldades, mas foram unânimes em apontar os efeitos deletérios de ter sido criada por um pai extremamente severo e uma mãe apagada ao extremo. Evidentemente, esta é uma constatação que explica tudo e não resolve nada; acontece que, para mim, mulher de um outro tempo, vivendo numa era líquida e espetaculosa, havia a necessidade imperiosa de ver.
            E ver não foi em vão. Acompanhar a cena representada em sua inteira crueza, teve a virtude de me revelar um segredo de alcova da condição feminina: mulheres trocam prazer por poder, pagam da sua biologia o tributo civilizatório. Os homens conjugam os verbos correspondentes de forma mais “natural” e substantiva; ambos, porém, ao fim e ao cabo, se entortam para dar passagem à senhora “cultura”; como vi se contorcerem as personalidades sob as rendas, os tecidos, pós e perucas; assim como presenciei corpos e almas arfando sob anáguas, sufocando em corpetes munidos de assustadoras barbatanas. Impossível esquecer aquelas vidas esgarçadas rolando das camas para os sofás, deformando-se sobre marquesas e bergères, sorvendo aos bebericos suas tisanas enquanto maquinavam tramas de glória tão efêmera quanto indigna.
            É sempre arriscado aquilatar pessoas e situações distantes no tempo; não sou nenhuma especialista capaz de recriar outros universos morais, ou “mentalidades”, opino a partir do meu pedestre entendimento acerca do que acredito ter vivido. Por exemplo, Jeannette, a criada, deu-se por feliz casada com um bruto que lhe ia ao pêlo; Françoise, a mulher mais influente da França, sentia-se acossada por um rei que gostava de comê-la. Vá entender. Esta é mais uma inestimável lição da TVP (terapia de vidas passadas) a respeito da natureza humana: julgamos ser felizes ou desgraçados por comparação, tudo depende do que os outros acham.
            ― O melhor favor que lhe posso prestar ― respondeu o cardeal Richelieu a um pedido de clemência da mãe de Françoise ― é manter esse homem preso.
            Dura verdade. O pai da futura Madame de Maintenon era uma enciclopédia universal de vícios: nobre-de-espada arruinado, foi grileiro de terras alheias, assassino, jogador, mulherengo, conspirador, moedeiro falso, apóstata e, como se tudo isso não bastasse, poeta. Neste seu último mister, chegou a cometer umas trovas bem tosquinhas, mas suficientes para seduzir a filha do carcereiro que o seguiria de prisão em prisão, a cumprir sua sentença de amor. Nascida na prisão de Niort, a terceira filha do escalafobético casal foi recolhida pela tia paterna, Madame de Villette, que lhe proporcionou alguns anos de estabilidade no Château de Mursay. No último degrau da impressionante escadaria de entrada do palácio havia uma inscrição que ela jamais esqueceria: “É difícil subir”.
            No resto da infância ela correu ceca e meca; sempre jogada de um lado para o outro, acompanhou a família quando se mudaram para as Índias Ocidentais (na verdade a Ilha Martinica, no Caribe), onde o pai abandonaria mulher e filhos, de volta à França, com a mãe aparentando ter desatarraxado, não um, mas vários parafusos, foi enviada a um convento para ser educada na fé católica e receber a primeira comunhão. A loucura coletiva não a marcaria menos que a materna: naquela época os europeus se trucidavam regularmente por causa da Virgem e dos santos; reformistas protestantes contra católicos, aliados contra inimigos do Papa, etc. Desde o século dezesseis, com a horrenda matança da Noite de São Bartolomeu, eclodiam perseguições aos huguenotes (protestantes franceses) patrocinadas pela casa real francesa e a Igreja.
            E aqui, novamente, reaparece a minha dificuldade “moderna” de compreender os valores desta mulher que aprendi a admirar ― por que ela se encarniçou posteriormente contra a religião da própria família? A melhor explicação que obtive passa por duas outras figuras de relevo em sua formação: a madrinha, condessa de Neuillant, que manobrou para afastá-la dos parentes, e irmã Celeste, que, no convento, ensinou-a a domar os abismos da carne e lhe impingiu uma firme direção espiritual por meio de confessores. É a condessa que a introduz nos grandes salões artísticos e intelectuais de Paris, onde conheceria seu primeiro marido, o poeta e dramaturgo burlesco Scarron.
            ― Prefiro me casar com um homem paralisado do pescoço para baixo a voltar para o convento ― disse a jovem de dezessete anos ao casar com aquele precursor da stand up comedy preso a uma cadeira de rodas.
Quando o notário redigia o contrato nupcial, perguntou a Paul Scarron qual dote concederia à belle indienne, apelido de sua futura esposa.
― A imortalidade ― respondeu folgazão. Na verdade, o devasso poeta conseguia, a preço de saldo, uma enfermeira bela e fiel que cuidaria dele por seis anos até o seu último suspiro. Sem sexo ou paixão, mas sem riscos de parte a parte.
Françoise, agora viúva Scarron, passa a fazer parte do grand monde, e nele, planeja sua ascensão rumo ao topo. Sempre aconselhada por um grilo falante de batina. Viúva, porém honesta, aproxima-se de Athénaïs, marquesa de Montespan, a ardilosa e pérfida primeira-amante de Luís XIV ― jararaca terrível que tinha o hábito de envenenar outras candidatas ao leito do rei-Sol. Sempre vestida de preto, com o terço na mão e o Cristo na boca, Françoise ganhou a confiança de Athénaïs e tornou-se ama dos filhos ilegítimos desta com o rei. Detalhe: obrigou o rei a pedir-lhe pessoalmente para ser a preceptora da sua prole “paralela”; quando o monarca espichou os olhos para cima dela, repudiou o homem que afirmou ser o Estado; até então, ele pensara que só as mulheres feias viravam beatas. Quando a rainha Maria Tereza morreu, Madame de Montespan ficou de queixo caído quando o rei deixou uma marquesa para se casar com a governanta.
Reminiscências assim costumam ser enganosas, mas Françoise foi uma marionete nas mãos da Igreja, uma Mata-Hari de corte mais religioso, estrategicamente colada ao ouvido e à cama do rei. Conselheira desastrosa: Luís XIV revogou o Édito de Nantes, acabando com a liberdade religiosa na França e reativando as perseguições aos huguenotes, desprezou nobres, ignorou o povo, e se envolveu em guerras demais.
― Sire, não entendo, por que tamanha contradição? Com uma mão me enobreceis, dais-me até um castelo, com a outra, me rebaixais com um casamento morganático... ― Françoise via consternada escapar a grande oportunidade da sua vida.
― Senhora, são as precauções que a minha posição acarreta; que importa que o vosso título não seja de rainha, acaso é pouco ser minha legítima esposa? É só uma precaução para que um fruto eventual da nossa união não se torne candidato ao trono. Minha sucessão já vai ser complicada o bastante ― o que o vaidoso rei escondia era o quanto pesava nesta decisão a origem humilde dela e o medo do ridículo pelo seu casamento pregresso com um poeta burlesco.
― Frutos, que frutos, senhor meu? Acaso desconheceis que sou uma mulher de quarenta e cinco anos?...
Viveram juntos por trinta anos. Aos setenta anos, Luís XIV ainda a procurava sexualmente duas vezes por dia, o que a aborrecia. Ela consultou o seu padre que lhe disse para não negligenciar suas obrigações. Aos setenta e seis, quando faleceu, o rei ainda visitava seu leito; ela sobreviveu quatro anos ao pôr do rei-Sol.

domingo, 4 de novembro de 2012

unfinished touch




If I could save eternity in a day
then
it'll be the day I met you

If I could make wishes come true
I'd save every day like a treasure
and again
I would spend them with you

If I had a box just for wishes
and dreams that turned real
that box would be full
with little things, moments

memories of me & you

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

vigiai as portas dos sentidos, principalmente a língua, os olhos e os ouvidos




diante de tantas máquinas pensantes
ouso sonhar

farto de figuras de linguagem
procuro um objeto direto

no samba na magrela no futebol
penso com as pernas

o abraço é ponte entre distâncias
encontro de solidões

o segredo das cartas repousa na memória
do papel
que já foi árvore
do rumor
que já foi pássaro
do canto
que já é manhã

todas as tardes o mar invade escritórios
interrompe reuniões
adia comícios
umedece a moça
assusta a praça
onde heróis de bronze
não dormem em paz

não creio que os sorrisos morem
apenas nas fotografias

nem que a lucidez habite
apenas a razão

preciso acreditar que a mentira
é também vocação da beleza
que não conseguimos alcançar