Seguidores

sábado, 21 de dezembro de 2013

Leviathan melanophyllus (#3)


― Cê tá bem aí atrás, Dárius?
― Só alegria. Os totós até já tão tirando no palitinho quem vai ser o primeiro a deschavar nóis!
― Cara, tô dando tudo, tô enfiando o pé na tábua, mas esta bagaça tá cheia demais pra correr!
― Suavão, Pernilla, meu negócio não é dar volta de charrete na pracinha, tá bom pra espantar o sono.
Pouco depois de uma lombada, a passagem estava obstruída pelo duplo desabamento de um poste de iluminação arrastado ao chão na queda do alfeneiro da calçada oposta. Do lado da raiz a passagem era larga o suficiente para um veículo e meio, passaram, a confusão no afunilamento da massa de perseguidores valeu-lhes preciosos metros de vantagem. Os veículos emparelharam novamente, sempre fugindo na direção do morro.
― Como é que tá aí, Nilla?
― Tranks, chefia, o chato é que, na subida, esta banheira anda bem menos...
― E você, Dárius, algum machucado?
― De boa. Só que gastei as biribinhas todas nos pulguentos.
― Tamo com sorte, olhem lá adiante... ― Rebeca chamou a atenção para o alto da estrada, onde a avenida ladeava uma pequena praça e se dividia numa subida abrupta a sudoeste, e um braço de asfalto sinuoso rumo ao norte.
A carcaça de animal grande, capivara talvez, era disputada por uma nuvem turbulenta de urubus ao lado do que tinha sido uma banca de revistas. A matilha partiu pra cima sem hesitar, apenas uns poucos desgarrados continuaram no encalço deles.
― Segura aí minha gente, vou peidar na fuça da cahorrada...!
A bomba, lançamento preciso de Naldo, fez os últimos rafeiros desistirem. Brigar com os bicuços de repente parecia bem mais divertido; pra quem chafurda em porcaria o dia todo atrás de restos, a inhaca da carniça satisfaz mais o paladar do que o gás lacrimogênio.
Resolveram se abrigar sob o ponto de ônibus tomado pelo mato. A pequena praça adjacente era uma fonte verdejante regurgitando ondas de proliferação vegetal, as grossas raízes das figueiras-bravas cresciam desenhando um reticulado art nouveau entre os blocos remanescentes do calçamento. O restante da subida era bastante íngreme e em terreno relativamente aberto, então, viria a travessia da grande avenida, onde estariam completamente à mercê do ataque das aves de rapina.
― Pelo menos os gatões ficam longe com esta algazarra de uivos ― Rebeca checava os danos e baixas do arsenal.
― O asfalto é ruim na escalada, mas dá passagem... o que tem são os pombos que tomaram as casas da bira, digo, da beira da...
― Hmm, seguinte, estamos no limite do que podíamos ter gasto de munição a esta altura... ainda assim, nada é pior do que os bichanos.
― Ei, abaixa a cabeça Nilla!
Emergindo repentinamente da camuflagem, um louva deus descomunal agarrou a motorista pelas costas pinçando as garras anteriores no colete de proteção. Confundem o colete de kevlar com a carapaça dos escaravelhos. Pernilla dobrou o tronco num gesto ágil, sentindo zunir no ar a passagem da lança de Dárius que decepou de um só golpe a cabeçorra do inseto.
― Caracas, nem vi de onde veio esse filho da puta!
― Cê tá legal, amor? Valeu aí, Dá...
― Viram o tamanho do bruto? Então Reba, filma direito essa tua mina, tem macho na pegação dentro das moitas...
― Boa foiçada, soldado, gostei da prontidão. Pilotas, sem palavras, cês tão dirigindo muito. Tem barra de cereais aí na sacola, vamos dar uma forrada antes de seguir em frente.
Como previsto, sofreram um ataque maciço das pombas antes de atingir o topo. Três sacas de grãos de prejuízo. Antes de se atreverem a cruzar as quatro pistas que os separavam da encosta sul, por onde desceriam até o Galpão, avistaram os vultos dos carcarás nos terraços dos prédios margeando a grande avenida. Alguns gaviões cruzavam o céu a média altitude, urubus executavam suas manobras elegantes mais acima.
― Esta é a parte mais escrota do rolê...
― Não tem jeito: é ele, ou nós.
Dárius descobriu o encerado da caçamba e puxou o bicho pra fora. Ernaldo desamarrou-o e deu-lhe uma ferroada no traseiro felpudo, o filhote de coelho saiu correndo desarvorado para o meio da rua. As aves se lançaram na captura da isca viva enquanto eles atravessavam a avenida no pau. Ouviam os grasnados dos predadores na disputa furibunda descendo pelo outro lado da montanha.
― Mano, tu deu um pula-pirata no coelhinho que quase arrancou o rabo!
― Depois choro por ele, agora nós vamos ficar é bem do ligados: daqui em diante é território da gataria.
― Que porra é aquela gente? O mundo tá de ponta cabeça, ó lá!
― Fata Morgana.
― Nunca viu, Rebeca?
Bordeavam um talude do terreno quando o belvedere lhes descortinou um vasto retângulo da zona sudoeste. Efeito do calor do meio dia, a diferença de temperatura entre as massas de ar da planície e do topo criava o fenômeno óptico. A cidade como que boiava num céu impossível.


domingo, 15 de dezembro de 2013

Leviathan melanophyllus (#2)


― Fica sussa, chefe, do jeito que as ruas tão, o menor dos problemas nesse bonde vou ser eu, garanto.
Entretanto, a chuva parou.
Num ponto o mercenário acertava, desde o surgimento do Leviathan m. muito havia mudado lá fora, para além dos muros lacrados dos viveiros humanos ― tínhamos perdido o território.
A cidadela caiu em toda parte, sob o impacto da catástrofe biológica, o conjunto da humanidade experimentava um retorno dramático às condições reinantes na origem da espécie: isolamento, população reduzida, escassa dominância sobre os outros animais.
Alguns milhões de pessoas foram devoradas pelos seus próprios pets antes que a nova situação religasse nas massas o pavor da natureza selvagem. A expansão sem freios da Natura naturans.
Abrem-se os portões da Colônia Cecília.
Os veículos saem rapidamente para o meio do asfalto, executam uma curva à direita em alta velocidade, acelerando no aclive suave da rua curta. Pilotando o jipe, Rebeca dá cobertura andando na frente do caminhão carregado de frutas e grãos.
― Uhu! Barra limpa, mano, a hora é essa!
― É bom começar sem vento contra, mas a viagem á longa. Difícil não ter problemas com os penosos levando tanta comida...
― Hmm, certo... até galinha virou problema. Escuta, este corre é food for drugs, não é? ― Beca não se gastava em voltas pra chegar onde queria.
Food for aid. Estamos com baixos estoques de medicação contínua, sou contra arriscar soldados nisso. Nem mesmo acho bonito gastar estoque com bagulho, por mim, só mandaria drones atrás dessas pragas.
― Ah, você sabe que aqui perto só tem mercadoria de baixa qualidade... mas não é o que falam do Galpão, lá rola o isômero D, o mais, mais.
― Sei que falam do Dr. W toda essa asneira de metanfetamina, mas comigo nunca nem me propuseram missões do tipo ― Ernaldo mentia, a verdade é que não lhe deram muita escolha.
― Pô cara, queria te dizer, mó respeito...
― Que é isso, tá me estranhando?
― Nem um pouco, mano, cê sabe que cê é uma lenda viva.
― Sai pra lá Rebeca, corta esse mimimi, não tem lenda não, só tem estar vivo. Estrela neste esporte não chega a vovô.
― Você chegou aonde ninguém chegou.
― Pode ser, mas juro, não foi me achando o rei da cocada que fiquei vivo até agora.
― E esse Dárius, hem? Não parece amar demais a própria pele, tem pinta de maluco de dar com pau em pedra...
― Por isso que resolvi não ir no carro com ele, vou dormir na mira desse cara. A conta dele não fecha.
― Se pisar na bola com a Pernilla, deixa eu finalizar ele. Trato?
Riram.
Mas a mortadela insistia em voltar à sua boca, odiava ter de mentir para os seus homens. Já não podia escolher muito, lembraram-no disso. Estava ficando velho. Tinha de engolir Dárius e tudo mais que lhe mandassem, compreendera que não ia sobreviver a uma sala fechada com a mesa cheia de papéis, não se via vinte e quatro horas por dia enredado na política da Colônia.
Os problemas começaram ao deixar as ruas secundárias, perto do entroncamento da via principal, ao sul, o asfalto quase desaparecia no primeiro trecho aberto do caminho. O off road precisou abandonar o seu posto de observação na esquina para ajudar no desatolamento.
Neste momento, ouviram os latidos vindos do fundo da avenida. Uma matilha enorme, faminta e em disparada.
Rebeca pulou na cabine, Ernaldo se trancou no cockpit traseiro, testando duas vezes a ignição do lança-chamas. Ajustou o laser. Arrancaram na direção do bando, dispunham de pouco tempo até serem alcançados e precisavam criar uma distração ― sem se deixar capturar, o que era menos evidente, já que a velocidade do carro era um nada superior à dos cães.
Poucos pilotos executavam tão bem a manobra em U: Rebeca dirigiu a toda a velocidade na direção da cachorrada, trafegando bem aberta pela direita do asfalto; a poucos metros deles, deu um cavalo de pau de trazer o café da manhã junto com os bofes pra fora. Naldo ficou de frente para um mar de focinhos arreganhados, rosnando enlouquecidamente.
― Quipariu, Rebeca, cê precisava chegar tão perto?!
― Vamo, cara, aciona logo essa porra de apito!!
Mandou um jato de chamas nos vira latas que quase encostavam na carroceria, e se virou para alcançar o Silent Dog Whistler. Rosqueou o tubo na posição três, soltou dois silvos curtos, agudíssimos, praticamente inaudíveis: pii-pii. A matilha parou de repente, como na brincadeira de estátua.
― Força Beca, pé embaixo mulher, a bobeira deles não vai demorar pra passar...
― Segura, peão, que nós vamo fritar pneu!
Refeitos do susto, os cães retomaram a perseguição. Problemão: os companheiros só agora conseguiam pôr a jamanta em marcha no atoleiro deixado pela chuva. A falange canina se dividira em duas, a maior parte perseguia-os de perto, um grupo menor dava caça ao caminhão. O lança-chamas de Dárius falhou, obrigando-o a gastar toda a sua cota de granadas nos mais próximos. Se equilibrando com dificuldade na caçamba, ele lutava no corpo a corpo, golpeando com arpões e lâminas, alvejando o laser nos olhos da canzoada.


quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Leviathan melanophyllus (#1)




            Além disso, era um daqueles homens que preferem observar a própria vida, julgando impertinente qualquer ambição de vivê-la. Deve-se acrescentar que Ernaldo observava seu destino pessoal da mesma maneira como os outros, mais numerosos, costumam olhar pela janela um dia de chuva.
            Pouco antes que saíssem, começou a cair uma chuva miúda. Expedição suspensa, por enquanto.
            Se tivessem lhe perguntado, Ernaldo teria respondido que a sua vida continuaria assim para sempre até o final previsivelmente abrupto.
Na certa acabaria devorado pelos bichos, ou morto por algum bando de saqueadores rivais, como, de resto, tinha visto acontecer ao longo dos anos a toda uma geração de companheiros. Perdas em ações externas, segundo o discurso oficial. Toda a sua geração. Era o mais velho, mais experiente, o chefe da operação.
            Um grupo sem novatos, Dárius, Rebeca, Pernilla, e ele. Dois em cada veículo, sem blindagem, mas equipados com canhões de grosso calibre. Sem pressa, terminaram de carregar equipamentos e víveres no caminhão: lasers, granadas, lança-chamas, mochilas de alpinismo, latas de embutidos, anfetaminas, se precisassem passar a noite fora, além de ampolas de propofol, caso fossem capturados.
            Pernilla e Rebeca são casadas, motivo pelo qual pôs a primeira para dirigir o caminhão-caçamba, e a segunda com ele na off road. Adotava esse sistema quando havia mais de um carro, se um veículo se perdesse do outro no meio da missão, a relação forte entre dois soldados sempre funcionava como estímulo adicional na hora de se decidir pelo resgate.
            Ernaldo tinha mais tempo de comando do que os outros de correria, mas não era isso que o preocupava naquela manhã. As meninas eram muito boas de serviço: firmeza, lealdade e, sobretudo, um tipo de coragem sem o tempero da estupidez. Dárius era o cabelo na sua sopa. Temerário, descuidado, conduzia-se por hábito no limite da insubordinação, fazia parte dos desperados, aqueles que entram na milícia faltos de opções e vocação.
            Perdera toda a família num ataque das feras.
            ― Naldo, nós só estamos aqui porque somos “diferentes”.
― Caramba, preferia que você estivesse decorando os caminhos alternativos no mapa, em vez de fazer filosofia...
― Bah, isso o GPS faz sozinho... tou falando dessa vida que a gente leva, dizem pra nós: “não há mais nobre profissão dentro da Colônia”, “vocês são a reserva moral da comunidade”, e por aí a fora. Puta hipocrisia...
― Bom, se você quer tanto saber, também reconheço a falsidade social, não vivo numa bolha... só que, não inventei e não gosto desse jogo, nem existe a hipótese “não-vou-jogar-nunca”, mas há coisas que são reais. Sobreviver é uma delas, meu foco tá aí.
― Certo, é bem isso que se espera de um comandante: foco, disciplina, deixar fora todo o resto...
― Numa coisa você tá certo, é uma pérola do humor negro, agora que estamos todos igualados na mesma lama, nego ficar com essas baboseiras de subespécies, raças, aptidões inatas...
― Era disso que tava falando... nós vivendo na duranga, e só se fala merda por todo lado, um monte de gente afirmando isto, negando aquilo, e vice versa, enquanto a garra aperta, o cerco se fecha à nossa volta!
― Ok, Dárius, mas, qual a alternativa? As pessoas só conseguem levar em frente se alguém estiver o tempo todo a lhes aparar as arestas do mundo com histórias da carochinha... faço o quê com isso? Agora, quando a gente entra em ação, é preciso apagar as ideologias, limpar os sentidos para se deixar guiar pelos instintos, o medo carnal. Acredito no que sinto, não no que minto.
― Hoje, quando olho pra dentro, descubro pouco medo em mim.
― Já tinha percebido. Vou ser muito direto. Isto não me agrada, não ouça como julgamento sobre você e suas motivações, só não quero minha equipe correndo riscos desnecessários.