Seguidores

domingo, 31 de março de 2013

O último fim de mundo do milênio (V)



ZABA 19:18

            Ela olhava distraidamente pela janela do carro, quando a solução lhe apareceu bem na frente do nariz.
E que aparição: a traveca japonegra loira, gigantesca e desvairada, montada em botas vermelhas de salto vertiginoso, corpete, lingerie e meias arrastão ornando em carmesim berrante, desfilava pela avenida do Jóquei como se estivesse na Sapucaí.
É isso, entendi, simples assim: mudar o foco, apresentar o contraplano; boa Zaba, sua massa cinzenta não fritou! Vou mudar radicalmente a lista de convidados da festa lá em casa... hmm, meus amigos vão entender, avisando agora... são sete e dezoito, ah, todo mundo se arranja algum chill out... ainda dá, e depois, os meus amigos estão em todas as listas VIP desta cidade. Já o pulha do Nino e a biscateira da personal-amante, vão ter A balada pra lembrar pro resto do milênio, garanto que vão!
“A prefeita eleita, Marta Suplicy do PT, toma posse amanhã, e será a segunda mulher a governar a maior cidade da América do Sul... Previsão do tempo para amanhã, dia primeiro de janeiro: mínima de vinte e um, e máxima de vinte e cinco graus na região metropolitana, tempo nublado com chuvas ocasionais...”
Desligou o rádio.
Concentrou-se em um ponto indefinido do universo. Pronto. Aconteceu mais uma vez: Zaba era de novo a empresária top que a afasia transitória varrera da sala de comando da sua vida; o cérebro arguto e pragmático já tinha montado um plano de ação. Etapa por etapa.
Com dois telefonemas, estava falando com a pessoa certa ainda no carro.
“Bom, veja, eu sei que estamos em cima da hora demais, mas olha: quem me passou teu número, garantiu que você é o cara... tá, sei, mais caro... não, claro, o importante é que sejam divertidos e, ah, faço questão das fantasias, o tema é um baile de máscaras. Você vai ter que me retornar pra avisar, isso, a placa da van... se eu não deixar na portaria do meu condomínio, não entra... É, isso, Sunrise Village, você anota o endereço?...”
Chegou a casa, Nino ainda não tinha voltado. Dispensou todas as empregadas, a festa ia ser open bar e self service; não estava com saco de alimentar marmanjo, só na mamadeira: cerveja, Chivas e Taittinger.
Ligou pro traste enquanto ia deixando as roupas pelo chão a caminho da cozinha. Andava inteiramente nua pela casa, uma Iracema com lábios de fel, formas generosas e carnação rija; aos trinta e nove, Zaba era de tirar o fôlego de triatleta: linda, rica, inteligente, despachada... fora o corpão de viola-da-gamba. O Nino devia ter batido a cabeça em alguma quina.
“Alô, alô... oi amor, sou eu, você ainda tava malhando? Claro, posso imaginar... hã?, nada, nada, só tô imaginando você ficando todo saradinho, só pra mim... certo, te espero. Ah, avisa pra nossa personal que a festa mudou... é, uma surpresa que resolvi fazer, uma coisa, assim, mais agitada... mudou só um pouco, vai ser festa à fantasia... a gente merece, amor, é a última do século vinte!”
Esqueceu o que tinha ido buscar na cozinha.
Abriu a geladeira, serviu-se de um prosecco. Foi até o gaveteiro, retirou do estojo uma faca de cerâmica. Atravessou a sala com a enorme adaga negra numa mão e a taça na outra. Sua atenção se virou de relance para uma foto sobre o console da lareira; arrancou-a da moldura, largando a bebida ao lado do passepartout vazio.
A fotografia mostrava três pessoas sorrindo em trajes de academia.
Uma corna e dois traíras.
Zaba se viu repentinamente coberta por um manto gosmento de larvas sanguessugas: a alucinação transitória trouxe-lhe de chofre a imagem mais nítida da legião de encostados que sustentava. Só tinha descoberto mais dois. Picou a foto em tiras finas com a lâmina ultra afiada formando um montinho no chão.
Abriu as pernas colocando-se sobre o carpaccio de aparas e sonhos desfeitos, e urinou em cima.


MATHEUS BUCALEM 19:28

            “Matheus... Matheus... Matheus!! Você quer fazer o favor de sair desse quarto?! Desliga o computador e vem pra baixo, seus avós chegaram”, dona Nadira se preocupava com o tanto de horas que o menino passava no videogame, mas o marido não autorizava o confisco. Tudo deixava ao caçula, o filho homem.
            “Já vou, mãe, só mais um pouquinho...”, não podia acreditar que a mãe ia arruinar tudo, Matheus estava no meio da missão. Não podia sair agora, desfalcar a equipe na hora do mano a mano.
As mães não conseguem entender o significado de on line? Não é um jogo de liga e desliga, pô!
Com efeito, era realmente distante a galáxia de preocupações onde se consumia a mãe de Matheus para entender o universo implacável de Counter-Strike. O game de combate do momento. Sair agora certamente lhe custará uma punição em futuros torneios de equipes.
“Filho, desce agora”, a intervenção do pai selou seu destino. Game over.
Que chateação foram inventar, jantar de Réveillon! Nem presente ganha, só pentelhação e frutas secas, que saco!
A sala estava uma confa federal, os avós tinham sido agredidos no semáforo antes de chegar ao condomínio. O pai falava ao interfone com a segurança; a mãe, as irmãs e as empregadas se desdobravam entre a avó, muito nervosa, e o avô, nervoso e com um galo na testa. Dois bandidos tentaram roubá-los, mas se atrapalharam com a lentidão deles para entregar os pertences; Fugiram sem levar nada. Sobrara uma pancada no coco do Vô, mas ele não parecia muito mal ― quem estava fora da casinha era o pai.
“Você tem mesmo que sair?” a mãe sabe dos perigos destas ‘saidinhas’ do marido, mas não pode confrontá-lo em público. Intimamente, teme o traço hereditário que vê despontar no filho: ambos não aceitam que, uma hora, o recreio acaba.
“Que é que você acha?. É preciso registrar o B.O., afinal, agrediram os meus pais!”, Walid Bucalem, na verdade, prepara-se para matar dois coelhos com uma caixa d’água só. Vai prestar queixa na delegacia mais eficaz do bairro: basta dar a fita pro Chantecler, o trafica da favela ao lado do Sunrise, e esses nóias rodam bonitinho. Daí, é aquela história do Jaques: já que está por ali, traz munição pra dar uns tirinhos antes da virada de ano. Só uns tecos pra comemorar.
“Matheus, vamos pro seu quarto? A gente relaxa um pouco lá até sair a janta”, tal como o pai, o avô também tem loucura pelo menino.
“Isso, vamos Vô, aqui tá muito chororô”, o quarto de Matheus fica no terceiro andar; a subida é um sofrimento para as juntas do avô, mas a recompensa é certa.
“Como tem andado a... astronomia?”, o avô desfruta intensamente da luneta que o neto instalou na janela do seu quarto no sótão.
“Hmm, médio, muita gente viajou, as vizinhas tão muito quietas”, apontou as lentes para uma construção modernosa no fim da rua. Arquitetura bem style: cimento armado, paredes de vidro, baixa; do seu posto secreto de observação, Matheus pegava ângulos bons de uma sala, dos corredores e da piscina; a dona da casa tinha uma abundância e uma peitância que lhe proporcionavam bronhas inesquecíveis.
            Mas nunca tinha dado sorte como daquela vez. Correu a pegar os binóculos no armário, apagou as luzes do quarto e voltou como um raio pra janela.
            “Mas o que é que você está tão...?”, ainda arfando da subida, o avô sentou-se e ajustou o focou do telescópio amador.
            Boquiabertos, avô e neto respiravam em longas inspirações como se pudessem absorver a cena pelo ar. Ofegaram em silêncio por longos minutos.
            “Vô, aquilo na mão dela... é-é uma faca...”
            “... e nuinha como veio ao mundo, meu Deus, que pedaço de mau caminho!”
            (...)
“Vô, ela tá...”
            “... mijando, ela tá mijando!”

sexta-feira, 29 de março de 2013

O último fim de mundo do milênio (IV)




7. METALEIRO 19:15

            “Que-que-que ca-ca-cagada do carai, do-dois pi-pi-pneu estorado, mano!”, Calunga, o gaguinho do rolê, tartamudeava resmungão no seu dialeto de sílabas truncadas sentado no meio fio.
            “Só nóis cruzar esse alemãozinho de novo pr’ele ver o sacode que vai tomar, vô virar ele do avesso, fazer o cu dele sair pela boca... playboizinho de merda!”, Marquinhos Paraná praguejava agitando a camiseta para os carros desviarem na pista, enquanto Quilô empurrava o pau-velho até o posto de gasolina mais próximo.
            O líder planeja no início, antes de começar a agir.
            Único a permanecer dentro do Monza, o chefe mantinha o controle do volante ouvindo as rodas ferir o chão durante a subida rumo ao Seven Eleven. Um contratempo fodido: deu pra trocar o estepe, mas ainda faltava uma câmara pro segundo pneu. Achar um posto de serviços aberto àquela hora, domingão, último dia do ano, já não tinha sido mole, que dizer de um borracheiro? Metaleiro destacou o Velho e o Berinjela pra irem na captura.
            Já tamo atrasado pra caralho na ponta marcada com o Doutor Jordão. Esse velho papa-óstia é pior que furúnculo no rabo, mas pode adiantar muito o meu lado. Não vou desistir de passar na mansão mal-assombrada, nem que chegue lá meia noite!, quero ter as passagens e os ingressos na mão ainda hoje, senão, não vai ter arrego.
            Metaleiro era um sujeito acima da média, e sabia disso. Tipo aquele carneiro que levanta a cabeça acima do rebanho e enxerga alguns palmos à frente do resto ― um ciclope em terra de cego, mas capaz de usar todo o alcance da vista única. Descobrira em si próprio o talento gerencial e o desenvolvia pacientemente, aliando a pertinácia com a ambição; plenamente consciente de que a sua expertise é a mais valiosa desde que a humanidade aboliu a primeira versão da lei do mais forte: sabe que a força está do lado daquele que exerce controle sobre os outros. Metaleiro é um gestor de recursos humanos, um administrador de grupos, líder hábil e agregador.
            O verdadeiro método, quando se tem homens sob as suas ordens, consiste em utilizar o avaro e o tolo, o sábio e o corajoso, em dar a cada um a responsabilidade adequada.
                        Tinha lido a Arte da Guerra de Sun Tzu numa edição vagaba que se desfez antes de chegar à página sete do livro, mesmo assim, conseguiu decorar uma meia dúzia de frases nas quais pensa constantemente, sem, contudo, compartilhá-las com os manos da sua quebrada. Fazendo uso de meio neurônio, entendeu que no seu pequeno grupo de comandados dispunha de uma unidade compacta de soldados, e oficiais capazes de constituir o que o general-filósofo chamava de estado-maior. Os cinco que o acompanhavam formavam justamente o núcleo duro da sua falange; Metaleiro precisava tirar as meias sem tirar os sapatos, ou seja, transferir know how para que eles pudessem se apropriar das táticas de suas conquistas, sem, no entanto, discernir a estratégia que gerou as vitórias; na prática, significava abrir para a elite dos manipulados uma parte dos segredos do manipulador ― algo tão difícil quanto ensinar o truque sem estragar a mágica.
            Esses cinco mano é o que tem pra hoje, quando estiverem prontos, vão trazer outros, que depois trazem mais outros. Pela ordem. Um exército de mané e zé-ruela tocando o terror, o pesadelo da burguesia. É assim que é, mano, mas vai ser osso impregnar as idéia dessa rapaziada sem noiar demais o Tico e o Teco. Vamo ver: tem o Quilô, de quilômetro, forte como uma besta, e besta como uma besta; aí o Velho, o que fala menos groselha deles todo; o Marquinho Paraná, trafica e roleiro; depois, vem o Calunga, nosso irmão das bombas e dos fogo; ah, tem o Berinjela que, bem... o Birinja é o Birinja e pronto! A gente dá o perdido pra não trazer ele no rolê, mas o mala sempre cola nas parada que nós tá, aparece ninguém sabe de onde, e vai ficando...
            Encostado na mureta da loja de conveniências, espera pitando uma guimba. Passou o tempo em que seguia os cabeças da Independente, pensa que chegou a hora de formar a sua própria organizada, com estatutos, regras e objetivos próprios ― os seus. Na visão de Metaleiro, uma torcida organizada não deveria fazer demais o jogo da imprensa, nem obedecer demais à diretoria do seu time; na sua avisada opinião, as maiores agremiações de torcedores são mais cortejadas pelos políticos, sempre atrás de currais eleitorais, sacrificando da autonomia no processo; porém, um grupo menor, mais bem coordenado, com o rabo menos preso, estará mais apto às ações que necessitam de maior ousadia. Um bom exemplo é o acerto que está prestes a fechar com o Doutor Jordão.


8. NATASHA 19:00

            “Meu nome é Natasha,
            uso saia de borracha,
            meu negócio é bolacha,
            entro na balada na faixa”
            Diante do espelho de três folhas do camarim, iluminada por uma guirlanda de lâmpadas feéricas, Natasha se maquia metodicamente usando seu melhor equipamento: um estojo importado da Sephora. De vez em quando, ri sozinha lembrando a falseta dos amigos da cena S&M.
            Saia de borracha, uma ova, hoje vou trabalhar toda emborrachada!
            Ela gosta de precisão, se corrige mentalmente, seu figurino para a sessão de logo mais com o professor Camarinha praticamente não inclui borracha: botas de couro com perneiras acima do joelho, collant de corpo inteiro em suplex, touca com máscara cobrindo olhos e nariz, chicote de couro com nove tiras, sobretudo em vinil elastizado com ultra brilho... e a super maleta metalizada das mil e uma malvadezas, único acessório a fugir do pretinho básico.
            Termina de aplicar o corretivo de olheiras e começa a espalhar a base pelo rosto; confere o resultado no espelho, retoma suas reflexões; decididamente, está numa veia filosófica nesta noite. Talvez influenciada pela profissão do último cliente do ano.
            O professor é o tipo de cliente que eu gosto: sabe o que quer, não é novo no babado, tem método, é discretíssimo, não freqüenta as baladas e festas privê do mundinho (detesto misturar prazer e trabalho), e, o melhor de tudo, paga bem.
            Confere o relógio digital ching-ling na cômoda, impulsiona a cadeira giratória com os pés para alcançar o pote contendo pó no tom da sua pele muito branca; Natasha desliza seu corpo esguio pelo estúdio multiplicado no reflexo triplo do boudoir. No rosto de traços afilados, maçãs salientes e delicado queixo pontudo, vai desenhando aos poucos uma máscara de sedução e implacável Nêmesis. O personagem que compõe é uma mistura da Trinity, de Matrix, e da Mulher-Gato.
            Não se pode entregar só o que o cliente pede, convém dar um toque pessoal. A fantasia do pervo deve ser rigorosamente montada no aspecto luxúria, mas pequenas surpresas no décor são indispensáveis. É o que separa o poser do grande artesão da dor.
            Aproxima a face do espelho para traçar uma linha reta e fina em torno dos olhos com o delineador; depois, pincela cuidadosamente duas cores de sombra nas pálpebras; com a esponja, dá uma esfumada na tonalidade obtida e compara ambos os lados. Perfeito. Adiciona a máscara para cílios e aplica os postiços: um olhar imperioso em tons de azul e cinza.
            Trepada straight, fodinha missionária, posição papai-e-mamãe, são que nem feijoada com sabor baunilha; uma boa bosta! Sexo só é sexo quando é kinky, quando tem fetiches, escravos, carrascos,  algemas, pancadão...
            Dedos longos e unhas postiças despontam das luvas brancas com aplicações de strass. Finaliza com um banho de perfume Salvador Dalí e um toque de Lolita de Lempicka. Sim, Natasha é lenda, mito, na comunidade BDSM (bondage, dominação/submissão, sadomasoquismo). A melhor dominatrix que um masoquista pode encontrar em São Paulo.
            “Sexo são, seguro, sensual e consensual”, seu lema virou bordão no métier.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Hai kai (outono)


não

sei se sou poeta

sambista ou corifeu

sei

que as dores do poeta

também as sinto

eu

domingo, 24 de março de 2013

O último fim de mundo do milênio (III)



5. DOUTOR JORDÃO MURGEL LIVIEIRO NETO 19:12

            O condomínio horizontal Sunrise Village é, na verdade, um micro-bairro fechado que parodia os afluentes suburbs (norte) americanos dos anos oitenta: sobrados de dois ou três pavimentos pintados em inevitáveis tons pastel, inverossímeis telhas de ardósia, típicas esquadrias e requadros brancos, sem falar do indefectível jardim de frente, cujas roseiras baixas se continuam nas laterais em sebes de cercas-vivas igualmente baixas rumo aos fundos da casa, onde se localiza a infalível piscina. Encapsulado por altos muros guarnecidos de cerca elétrica e câmeras de vigilância, o Sunrise possui três ruas com pavimento de concreto que saem da portaria serpenteando rumo a uma pequena rotatória que abriga a área comum: playground, sede social para as reuniões condominiais e a casa da zeladora.
            Todas as casas refletem o espírito yuppie tardio que animou o empreendimento imobiliário de meados dos anos noventa, menos uma, a do Doutor Jordão. Viúvo e sem filhos, o doutor era dono do terreno que deu origem ao loteamento; o palacete neoclássico ― no qual parece mais se esconder do que morar ― exibe uma sobriedade, e até mesmo um ar severo, em aberto desacordo com o estilo dominante. Não há varandas, sacadas ou decks; no jardim, em vez de parterres floridos, buxos e murtas; para ornamentar a fachada, ao invés do refresco das onipresentes primaveras, hera e ciprestes; as poucas janelas, permanentemente veladas por pesadas cortinas; piscina, necas. Os vizinhos apelidaram o curioso edifício de ‘Mausoléu’.
            Primeiro o homem faz a casa, depois a casa faz o homem, dizia Le Corbusier; mas, no caso, dava-se antes o contrário: a moradia espelhava plenamente os modos e rebus austeros que permearam toda a vida do seu dono; mais precisamente ainda, aquela era uma reprodução da casa onde ele passara a infância. Impedido de morar na mansão dos pais devido a uma longa disputa na partilha da herança com o irmão, resignou-se em habitar uma réplica construída sobre o terreno da chácara que pertencera à família. Um acordo com a incorporadora o isentava de pagar a taxa de condomínio, obtendo, assim, o menos pior dos mundos: segurança subsidiada em troca do decréscimo de autenticidade e exclusividade. São os ônus que a vida impõe, os vizinhos o detestam pelo seu esnobismo misantropo, e ele despreza o novo-riquismo e ostentação deles.
Doutor Jordão provinha de família quatrocentona, era homem circunspecto, profundamente piedoso, a tal ponto, que abdicara do exercício da medicina para se dedicar às obras de caridade e religião. Muito mais do que o aspecto exterior, a decoração do palacete semelhava ao claustro: escuros lambris de madeira dourada cobriam as paredes de alto a baixo; por todo lado, oratórios, estátuas de santos, ostensórios, turíbulos, brilhantes candelabros, genuflexórios de madeira de lei, riquíssimas banquetas de fina prata, lustrosas alfaias de damasco, tissos de resplendente ouro; e, dominando a sala de visitas, a peça principal, um armário de 1943 com vidraçaria centenária, executado pelo Liceu de Artes e Ofícios, contendo suas mais preciosas relíquias: um solidéu do papa Pio XII e dois certificados de bênçãos do papa João Paulo II.
Uma bela carreira a serviço da fé católica, passada em irmandades, ordens terceiras e confrarias, participando ativamente como leigo na organização da vida religiosa, na assistência aos doentes e sofredores, havia levado o doutor a escalar os degraus hierárquicos da fraternidade mantenedora de importantes hospitais da cidade: de benemérito passara a irmão remido (após trinta anos), mesário, vice-escrivão e, atualmente, mordomo. Mas isto não esgotava a personalidade do venerando esculápio, sua outra paixão o absorvia igualmente, passionalmente: o São Paulo Futebol Clube, glorioso tricolor do Morumbi, do qual era conselheiro vitalício.
Naquele último dia do ano marcara duas reuniões relacionadas aos dois cargos que ocupava, mas a primeiro compromisso já estava atrasado em mais de uma hora.
Onde diabos andarão aqueles meliantes da Independente que não chegam? É o que dá lidar com essa escória, devem ter se metido em confusão, ou então, o que dá no mesmo, estão se enchendo de cachaça n’algum mafuá...E não atendem o celular, nada funciona hoje,cáspite!


6. MATHEUS BUCALEM 19:14

            O cenário de guerra, envolvido pelo frio extremamente rigoroso do inverno, caíra num marasmo aparente, porém, um soldado não pode ficar imóvel, entrincheirado à espera da luz do amanhecer. O ar escurece, o termômetro baixa, o vento sopra rijo e cortante, o chão cobre-se de lama, mas há movimento e atividade por perto.
            Bom que tenho os óculos de visão noturna, mas estou sem a porra do defuser, o kit de desarmamento de bombas! Se achar uma das duas, vou ter que chamar alguém, hmm, isso pode denunciar a minha posição...
            Matheus acompanha o deslocamento dos companheiros de infantaria, a metralha troa incessante contra eles enquanto realizam a incursão nas linhas inimigas. O combate não cessa, não se interrompe o consumo de munições, gente não pára de morrer; nada se decide, cada um dos adversários procura com ardor fatigar e enfraquecer o outro.
            Tiros. As balas arrancam pedaços do muro poucos segundos depois de ele passar, calcula que haja dois terroristas escondidos entre as ruínas do vilarejo semi-destruído por onde se desloca cautelosamente. Sente a adrenalina encharcar o seu corpo, desencadeando uma agitação feroz que impele à ação imediata; mas não pode se deixar dominar por isso agora: agir por impulso pode lhe custar muito caro.
            Buzanga! Essa tirou fina do meu capacete, de certeza que tem pelo menos um sniper muquiado por aí.
            Armados de rifles Magnum AWP, os atiradores de elite são uma preocupação constante nesta fase de conquista do terreno, de luta homem a homem, olho no olho. Engatilha a submetralhadora. Sente a mão suada no contato com a coronha; não há tempo para arrependimentos nem orações, escolheu estar ali, escolheu aquela forma de vida e vai levá-la até às últimas conseqüências.
            Naquele momento é invadido por uma recordação involuntária: vem-lhe à mente a história do famoso aviador francês Georges Guynemer. Exímio piloto de guerra, Guynemer tornara-se uma lenda das batalhas aéreas da Primeira Grande Guerra após abater inacreditáveis cinqüenta e três aviões inimigos; condecorado com a cruz da Legião de Honra, perguntaram qual medalha ainda lhe faltava ganhar: “a cruz de madeira”, respondeu. Morreria pouco depois em combate.
            Então, o inimigo. Meio encoberto por uma parede derruída, Matheus vê as pernas de um adversário descendo cuidadosamente os degraus de uma escada de pedra. Faz pontaria.
            O cabação tá com a Kalashnikov abaixada, que baita vacilão! Foi mal aí véi, antes você do que eu...
            Prrap-pap-pá. Três tiros, um no alvo.
            Merda!, me precipitei, só acertei a perna. O cara conseguiu se arrastar para fora do campo de visão. Merda! Vai ser foda desentocar ele agora... podia ter esperado que ficasse por inteiro na alça de mira!
            Mas não era desprezível a vantagem que obtivera: ferido, o inimigo teria muitas dificuldades para escapar; se a refrega alertou os demais terroristas, também avisou seus colegas, os Capacetes Azuis. Precisava agir rápido, sem descuidar dos campers escondidos nas redondezas.

quarta-feira, 20 de março de 2013

O último fim de mundo do milênio (II)




3. OSSADA 19:08

            O carro, um Monza de cor vinho, vidros filmados, vinha a toda pela avenida; seus ocupantes urrando o nome do time de coração, atirando latinhas vazias de cerveja nos outros carros, assobiando, xingando, braços pra fora, batiam na lataria marcando o ritmo dos seus cânticos de guerra, em suma, faziam um escarcéu capaz de acordar as almas antes do juízo final.
            “Sou Independente, eu sou,
            vou, vou dar porrada eu vou,
            e ninguém vai me segurar...”
            Os demais motoristas abriam espaço para o veículo apinhado de hooligans de uma das mais temidas torcidas organizadas da cidade: a Torcida Independente são-paulina. Que besta ninguém é.
Não havia motivo aparente para tanta festa, já que a final da Copa João Havelange (arremedo de campeonato brasileiro) ocorrera bem longe dali no dia anterior, em São Januário, subúrbio do Rio de Janeiro. O jogo entre Vasco e São Caetano, interrompido por causa do desabamento de um alambrado aos vinte e três minutos do primeiro tempo, logo após Romário sair contundido, deixou um saldo de cento e dezessete feridos, dois em estado grave.
Por um desses azares do azar, o Monza dos ultras deu uma fechada num motoqueiro que também vinha numa pressa de quem vai tirar a mãe da zona. Pilotando a CB 400, lá estava a figura esquálida do Ossada; que não se fez de rogado: gesticulou sugerindo-lhes uma prática sexual pouco ortodoxa, insinuando, en passant, que as genitoras dos rapazes eram praticantes assíduas.
Uma temeridade. Ossada tinha mais colhões do que miolos, mais sorte que juízo; assim que parou no farol, atiraram sobre ele um morteiro que quase arrebentou moto e motoqueiro junto. Com os ouvidos zumbindo da explosão e sangue nos olhos, Ossada passou a perseguir os fanáticos, ziguezagueando alucinadamente na avenida Giovanni Gronchi.
Que é que eu posso usar contra esses caras? Deixa pensar o que tenho dentro da mochila... Ah, já sei, o refri!
Lembrou da garrafa pet com refrigerante que carregava, tirou uma das alças da mochila, girando-a para a frente do tronco ― tudo isso sem diminuir a velocidade nem se distrair da louca perseguição. Chacoalhou a garrafa, emparelhou com o carro, abriu a tampa e esguichou o conteúdo gasoso no parabrisas do Monza, cegando momentaneamente o motorista. Desgovernado, o carro subiu na ilha da avenida estourando os pneus dianteiros.
“Aí seus cuzão, chupa que é de uva!”
“Nóis ainda te pega, alemão do caralho!”
Frederico Sassaki Heilbron, conhecido como Ossada era uma figuraça: galalau de um metro e noventa de altura praticamente desprovido de gordura, donde o apelido, que ficava mais irônico por seus pais serem ortopedistas. Da herança materna oriental, só o cabelo farto e liso, mas no restante era um perfeito viking... doidão. Segundo constava, desde os quinze até seus vinte anos atuais, teria passado no total uns cinco minutos sem estar sob os efeitos de algum entorpecente.


4. PROFESSOR CAMARINHA 19:10

            Osmar Camarinha, professor e doutor em filosofia, um dos maiores especialistas na Escola de Frankfurt, estava sentado no trono do banheiro esvaziando seus intestinos para a sessão marcada com Natasha. Havia tomado, como de hábito nessas ocasiões, uma mega dose de laxantes.
            Uma questão de higiene. E também de ordem, algo que preza acima de tudo.
            A atenção dele se fixava uma gota de água parada no bocal da torneira do lavatório. A gota não caía nem aumentava de tamanho, como um batimento cardíaco suspenso entre a sístole e a diástole. Ou como a sua carreira acadêmica.
            Um novo arranco de cólicas desentranhou os últimos restos de conteúdo das suas torturadas tripas. Só líquido, e já quase incolor. Pensou com raiva nos seus inimigos dentro da Universidade — uma carreira até então brilhante, doutorado defendido na Alemanha, artigos publicados em importantes revistas européias —, pra vir um bostinha, que mal conhece Hegel, bloquear sua mais que merecida ascensão!
            Descuidara do aspecto partidário, apesar de ter feito a lição de casa na política institucional. Networking é tudo hoje em dia, mas não ser de esquerda nas humanidades é uma merda. Ontem, hoje e, talvez, sempre.
            Acabou de largar sua livre-docência no meio, decisão custosa, dolorida, mas necessária. Sem essa de ficar malhando ferro frio. Mas a vida também traz suas compensações: estava em processo de se transformar num intelectual midiático, um alargador das fronteiras do pensamento, desses que escrevem em jornais e revistas de prestígio suas prestigiosas reflexões sobre os impasses da contemporaneidade.
            O telefone toca na sala, ele se levanta e corre a atender marchando como um pingüim por causa das cuecas, arregaçadas até os tornozelos.
            "Alô, morzão?, tá tudo bem com você? Estão todos aqui em Guaxupé perguntando por você, quando chega, etc., é, eu sei... sei como é importante pra você participar dessa reunião, pra sua carreira e tudo mais, o Theodoro só fala que quer o pai..." a pentelha da mulher e da família dela não se conformavam com a ausência do famoso professor Camarinha no rastapé de fim de ano da caipirada.
            Que estopada aquilo deve estar, santo Deus.
            "Também tô morrendo de saudades de você môre, te ligo amanhã pra contar como foi, tá? Reza muito por mim, você sabe, é só uma festinha, um sarau na modesta cobertura duplex do editor-chefe... É, meu nome saiu na primeira página da edição de hoje, cê viu? Tá, môre, beijão, te ligo amanhã, beijo...", desligou aliviado, pegou o jornal para reler seu artigo. A repercussão do texto já era intensa; saboreou a releitura em pé, antes mesmo de limpar a bunda.
            Na perspectiva prevalente da modernidade ocidental, ao menos desde o romantismo aos nossos dias, o amor configurava um ideal de realização afetiva que ensejava um tipo de felicidade no qual o êxtase da dissolução no outro era compatível com a transcendência do desejo individual. Atualmente, nestes nossos tempos de narcisismo feroz e consumismo desenfreado, o amor se encontra como que privatizado, dessacralizado; pouco a pouco, aceitamos a noção de que a experiência amorosa pouco mais é que uma função fisiológica, um encontro fugaz regido pelo acaso e cujo destino inelutável é a provisoriedade.


domingo, 17 de março de 2013

O último fim de mundo do milênio (I)



Domingo, 31 de dezembro de 2000.


1. REINALDO ANGELIM 19:05

            Reinaldo Angelim está na cama lutando com o sono acumulado de um fim de semana de esbórnia intensiva e trampo a meia-bomba que começou na sexta feira e só deve acabar na segunda, isto é, se o mundo não acabar junto com a contagem regressiva de logo mais à meia noite. De um tempo a esta parte, deu de lembrar as palavras terríveis que a sua avó repetia incessantemente antes de morrer: “Ao dois mil chegarás, do dois mil não passarás”.
            Sempre é possível que uma dessas profecias apocalípticas esteja certa, embora o tão anunciado bug do milênio ainda seja motivo de gozação passado um ano do fiasco. Um rio Amazonas de tinta e bytes havia corrido, anunciando e garantindo aos quatro ventos e cinco continentes, que o mundo ia se acabar, os computadores (burros calculistas que são), recuariam ao começo do século vinte, zoando planilhas, cancelando dívidas, zerando sistemas bancários, paralisando empresas, desligando hidrelétricas, abolindo regras morais, dissolvendo casamentos, e... nada.
            Não rolou nada de nada em lugar nenhum do mundo, só caiu uma buta chuva do baralho que lhe arruinou o réveillon em Mongaguá.
            O problema do mundo é que ele não acaba, ou melhor, acaba, mas aos pouquinhos, em suaves prestações que cabem no seu bolso. Como sempre, o mundo só acaba mesmo para aqueles que se vão, como a sua avó, há cinco anos, e o seu pai, há quase dois. Perdas difíceis, que ele e a mãe suportam mal e mal, levando como podem.
Desperto? Durmo? Continuo a sonhar, ou acordo pra dentro deste jantar de pesadelo que a minha mãe está armando? Should I stay or should I go? Todos os funcionários do condomínio que estão de serviço neste fim de semana vão passar a virada aqui em casa: o porteiro e o jaburu da filha, os seguranças, o jardineiro mala, junto com a mulher mala e os pimpolhos, maletinhas idem ibidem. Credo. Triste ver a mãe se esforçando pra manter uma ilusão de festa familiar... rabanadas, maionese fria, doze passas, contagem regressiva na tela da Globo, brinde com sidra, abraçar gente que não gosto... de deixar o saco na lua!
Reinaldo e a mãe moram no Sunrise Village, condomínio de casas de luxo espetado entre um bairro nobre e uma favela onde o pai funcionava como um faz-tudo; até que os moradores resolveram construir um puxadinho na área comum, fazendo do faz-tudo um conveniente caseiro vinte quatro horas à disposição. Com a morte dele, atropelado num ponto de ônibus, a mãe assumiu o posto do marido dando conta do recado galhardamente. O difícil para ela era dar conta do filho.
"Naldo, você não vai levantar? Vem me dar uma ajuda na cozinha, vem...", pelo menos ela não ousava entrar. Falava atrás da porta do quarto dele.
"Já vou mãe, só mais um pouquinho", a última noite do mundo não prometia grande coisa para um rapaz de vinte anos, durango kid, e sem muitos amigos no seu pedaço.


2. ZABA 19:07

            "O governo filipino anunciou hoje que vai aceitar a ajuda dos Estados Unidos na investigação dos atentados em Manila. Cinco bombas explodiram ontem na capital das Filipinas matando quinze pessoas e ferindo outras noventa e cinco. Um hangar no maior aeroporto da cidade, um hotel de luxo, um trem, um ônibus e um parque próximo à embaixada americana foram os alvos das explosões simultâneas, ocorridas por volta do meio dia, hora local. Embora nenhum grupo terrorista tenha reivindicado os atentados até o momento, as suspeitas recaem sobre o movimento separatista islâmico Abu Sayyaf."
            O rádio despejava as incessantes notícias do mundo, que insistia em não parar às vésperas do último réveillon do milênio. Mas ela não conseguia prestar atenção. Estava rodando de carro pela cidade há duas horas, sem rumo e sem atenção; feito um autômato, parava nos semáforos, engrenava as marchas, freava, virava à esquerda ou à direita indiferentemente, em estado de choque.
            O século vinte se despedia, e a vida de Zaba desmoronava repassando na sua mente como um videoclipe em loop infinito.
            Executiva-chefe e herdeira da holding dos negócios da família, camelava de segunda a segunda em reuniões e viagens — enquanto os dois irmãos e a irmã se esfalfavam na temporada de polo, nas corridas de rally e nas colunas sociais. Pelo menos não atrapalhavam: deram-lhe carta branca pra gerir as empresas em troca de gordas, e sempre insuficientes, mesadas que torravam em (des) ocupações fúteis e inúteis.
            Trabalhara até o último dia do ano, conseguiu pegar a ponte aérea mais cedo só para fazer uma surpresa ao namorado. Por telefone, do Rio de Janeiro, organizou a festa de fim de ano na sua casa, a qual passou a dividir com Nino há seis meses. Chegou do aeroporto, nem passou para deixar as malas e foi encontrá-lo. Sem avisar.
            Estacionou sua Off Road na academia e, de repente, lá estava o Nino, ali, na garagem.
            Que estranha posição a dele, braço apoiado numa coluna, parece debruçado sobre alguma coisa...
            Aproximou-se discretamente andando pelo meio dos carros. Nino acariciava os cabelos de uma menina em roupa colante de lycra, falava-lhe ao ouvido coisas que não podia ouvir. A mão apoiada na coluna desceu, boba, pelo flanco da moça até abarcar uma das nádegas.
            A personal, o estafermo do Nino tá pegando a nossa personal trainer! Como é que eu não vi? Quando será que isso começou? Como você é trouxa, Zaba! E ainda fiquei de mal com a Renatinha porque ela tentou me avisar... Filho de uma puta, mil vezes filho da puta! Cagalhão! Dei a chave da minha casa, a minha casa!, prum calhorda desses... onde que eu tava com a cabeça?
            Foi se chegando quase em querer, precisava muito ouvir.
            "Preciso mesmo ir?", ela perguntava, lançando a cabeça para trás e refazendo o rabo de cavalo do cabelo.
            "Por mim, vai por mim. Não suporto os amigos dela, sempre falando de dinheiro, viagens, compras... uma gente chata e metida a besta que só. Além do mais, a Zaba te adora, você sabe", Nino falava, enquanto a sua mão percorria livremente o corpo da moça.
            "Aí que tá o problema, não gosto disso, me sinto uma falsa, uma traíra. Quando é que você vai sair da casa dela?"

domingo, 10 de março de 2013

A profundidade começa na superfície (final)



(...)

Amigo ― Hã-ham, parece que é sempre assim, tem dessas histórias que só alguém de fora da família pode contar, embora eu seja um amigo praticamente da casa... Ninguém te explicou direito como foi a morte do teu vô, né não Camila?

Camila ― Bem, até onde sei, ele se enganou com a dose dos remédios que tomava diariamente... vô Martos nunca aceitou que os meus tios pusessem um cuidador pra ajudá-lo...

Amigo ― O certo é que ele fez um mingau com todos os comprimidos, cápsulas e pozinhos que encontrou nos armários, pôs numa tigela, marinou tudo com campari, e mandou pra dentro. Tomou de colherada. ‘Seu’ Martos era orgulhoso demais, sabem?, acho que ele se viu muito perrengado, frágil; também tem o fato de que ele não processou bem a morte da sua vó... Não quis continuar, simplesmente cansou de lutar com a falta de sentido da vida, da solidão, e ainda havia a gataiada da vó Dita... pra encurtar, ele tomou o mingau do grande sono junto com os bichanos, todos os cinco.

Dara ― Quer dizer então que os barulhos da casa são... gatos?! Ou o fantasmas dele, ou deles?...

Amigo ― Aí é que as coisas se complicam: tudo indica que a bagunça que vocês e o resto dos vizinhos ouvem neste apartamento seja um dos gatos...

Camila ― Não estou entendendo nada. Você não disse que o meu avô e os gatos morreram juntos?

Amigo ― Pois é, mas aí vem a dona aritmética e as contas não fecham: aqui viviam o seu avô e mais cinco gatos, mas só foram encontrados quatro! A Lucinda, como se chamava a gata desaparecida, nunca mais foi vista... só ouvida. Os moradores deste prédio juram que perdida ela não está.

Camila ― Que história pra se contar no escuro, na boa querido, você tem o timing do terror gótico! De todo modo, sinto-me um pouco feliz por não ser a alma do meu avô que anda por aí; acho que ele não ia aprovar que a neta viesse morar com a namorida no apartamento dele...

Dara ― Ah, mas não deixa de ser triste, a pobre criatura não encontra repouso. É como se a Lucinda não estivesse viva nem morta, mas num estado intermediário, um limbo de nostalgia e busca desesperançada...

Amigo ― Oquei, embora seja assim mesmo que a maioria das pessoas passa seus dias: entre a saudade nebulosa e o frenesi angustiado. Todos acordam de manhã, poucos são os que despertam.

Dara ― Ouviram isso?

(Os três se entreolham em silêncio. Neste momento, voltam as luzes.)

Amigo ― Bom, acho que já dei com a língua nos dentes o bastante por hoje... Mila, desculpa ter entrado na sua crônica familiar tão bruscamente, não queria...

Camila ― Relaxa, é bom saber, afinal, moramos neste lugar. Até prefiro, detesto casas novas, sem enredos, sem cadáveres no armário, nem maldições... Te acompanho até à porta.

(Despedem-se com beijos e promessas de se reverem brevemente. As duas apagam as velas e as luzes elétricas, viram o sofá para a janela pra contemplar a noite de lua cheia.)

Camila ― E esta agora? Temos um fantasma entre nós, mas também, quem não os tem? Nunca te perguntei do teu mundo, não quis fazer da nossa uma relação de conhecimento científico... só que, agora que você conhece os meus, queria saber dos teus miasmas...

Dara ― Não seria a mesma coisa. É como a história que o teu amigo relatou: você precisaria viver lá pra se inteirar, há conhecimentos que só se adquirem in loco. Mas uma coisa me deixou feliz: sinto que esta é uma presença suportável pra você. É só um gato, mas não é um gato qualquer.

Camila ― Dizem que os gatos enxergam além das aparências, que eles comunicam com os outros mundos que a realidade dos cinco sentidos não atinge; às vezes, os felinos param a olhar certos cantos onde não há nada, como se pudessem sentir, ou pressentir, a presença daquilo que nós mal adivinhamos. Você tem razão. Acho que posso agüentar, os seres humanos agüentam tudo.

Dara ― Não é verdade, são poucas as coisas que se pode suportar. Suportar mesmo, quero dizer. Poetas, em compensação, podem suportar tudo; mas isso inevitavelmente conduz às portas da ruína, da loucura e da morte.

Camila — Tô com vontade de passar a noite aqui, ao seu lado, olhando a lua, sonhando com a estrela distante de onde você veio. Quando acabar o império de terrores da noite, o sol e a estrela da manhã trarão o conforto da hora primeira, nos encontrando naquele ponto onde tudo começa a nascer do perdido, lentamente.

Dara — E então poderemos inspirar profundamente, sorver o ar seco do dia e ouvir o grito ritmado do coração: sim-não, sim-não, sim, não... Eu me sinto perdida e feliz no desfiladeiro do dia; um dia nunca repete o anterior, são sempre metamorfoses extraordinárias: metade serpente, metade escada.

Camila — A melhor parte da noite é o silêncio. O silêncio respira, não digo que possa haver um silêncio capaz de abolir o ruído branco da cidade — este nunca desaparece, apenas abaixa seu volume nas horas nuas da madrugada —, mas o silêncio do silêncio, aquele que só eu conheço: o meu próprio silêncio. Nunca fui tão feliz como sou agora, vivendo a seu lado, você tem uma presença felina que me encanta: indomada, macia, silenciosamente intensa.

Dara — Então é isso? Sentir correndo em atropelo nos vasos do corpo uma enxurrada com todas as sensações possíveis: perfumes, cores, cavernas, árvores, pessoas, música? É isto a felicidade?, esse mal-amanhado de equívocos, esses vórtices infinitos, esses becos sem saída, essas miríades de milhões de sombras? Porque há felicidades evidentes como a sombra de uma montanha, e há também aquelas que são como as sombras contidas dentro de uma gaveta: sabemos que estão lá, apesar de não as ver. O amor, a única força que nos move, permanece música invisível; não é patético?, a mais bela das coisas do mundo, sombra de sombras...

sábado, 2 de março de 2013

A profundidade começa na superfície (IV)




Cena 5

(Noite. Apartamento do casal, Camila e Dara estão sentadas no sofá, Dara mostra seus desenhos caligráficos para a companheira.)

Camila ― Você está chorando!

Dara ― Estou. Aquilo de ontem me perturbou, é cruel demais, até uma criança tem medo, ou raiva, ou sei lá que mais... é muito pra mim, e é muito pra você também, não negue.

Camila ― Não fica assim, vai passar, tudo passa... É isso que mesmo que você disse: é só uma criança, sabe-se lá o que puseram na cabeça do coitadinho. Vai, mostra pra mim o que você andou fazendo, sabe, é incrível como você aprende rápido: dominou a minha língua melhor que eu, e agora, tá aprendendo sozinha o chinês!

Dara ― Os voluzianos amam se comunicar, conversar é uma forma de amor. Veja, é o que eu estou sentindo agora: bei ai, tristeza () e aflição ()... Os ideogramas são conceitos amplos, eles contam uma história por meio de imagens que se combinam e superpõem, criando novas histórias, liberando sentidos inéditos; por exemplo, bei, a tristeza (), é um coração () que se recusa (), olha, não te parece uma pessoa dando as costas a si mesma dentro do seu coração? Já a aflição (), ai, são os gritos e gemidos que saem da boca () daquele que trajou as vestes próprias do luto (); a aflição exprime um luto, a dor de uma perda publicamente manifestada.

Camila ― Puxa, com uma explicação dessas até parece fácil... Às vezes me passa essa piração pela cabeça: e se a gente brigar, e se o nosso amor acabar? Não posso simplesmente te deixar sozinha neste mundo que não é o seu, que não te acolhe direito, sei lá, me sinto um pouco responsável por você aqui...

Dara ― Estou tão sozinha como você na vida, quero dizer que estar viva é um exílio tão louco, solitário e sem sentido pra mim como pra você. Ninguém está a salvo, não enquanto está vivo. Você é mais aceita do que eu? Este mundo é mais sua casa do que minha? Camila, você é uma mulher humana, e eu, uma fêmea voluziana, certo, a minha diferença também se vê na pele; mas, no fundo, valemos tanto ou tão pouco uma como a outra. A cidade, esta cidade, qualquer cidade, é a mesma pra todos? Você pode andar sozinha pelas ruas nos mesmos lugares e nas mesmas horas que os seus amigos homens? Não pode, talvez nunca possa. As mulheres são uma espécie de cidadãs de segunda classe, o eterno segundo sexo; somos menos empoderadas física, social e politicamente. Bom, isso mudou muito nos últimos anos, é o mantra que todos repetem, mas... você, ainda acredita realmente que as pessoas querem viver sem a desigualdade?

Camila ― Vou abrir um vinho pra nós. No que me diz respeito, te digo que é preciso desejar e lutar pelo novo; quero estar à altura do meu desejo, e não ser do tamanho limitado da minha estatura...

(As luzes se apagam de repente, as duas acendem velas em vários pontos da sala. O telefone toca.)

Camila ― Alô, oi, sim, sou eu... ah, meu querido, quanto tempo, mas não, de maneira nenhuma, claro, venha, será o maior prazer... acabamos de abrir um vinho, claro, você sabe o andar, né? Tá bom, vou avisar na portaria...

Dara ― Quem era?...

Camila ― Um amigo meu, ele tá vindo pra cá... ficou preso na chuva e, agora, com o apagão, ligou pra saber se podia esperar o engarrafamento passar aqui com a gente. Você vai se divertir com ele, é meio fora da casinha, mas muito do gente boa.

(A campainha toca, Camila se levanta para abrir a porta.)

Amigo ― Puf, dureza subir essas escadas a pé... Boas! Gentem, vocês estão perdendo o espetáculo: as luzes dos carros viraram a única iluminação pública da cidade, que afunda nas trevas, no dilúvio e no caos; um belíssimo trombo de veículos paralisa a metrópole que não pode parar, das janelas dos prédios às escuras, lanternas e lasers apontam seus fachos inúteis para todos os lados; e, diante do descalabro armado, diante do desenfreado galope dos Cavaleiros do Apocalipse, eu lhes pergunto: onde estão os poderes constituídos?, o que andarão fazendo as autoridades? Ah, que distração, não é possível saber; se não está passando na televisão, não há como saber o que se passa. Ainda bem que me restou o celular para ligar pra vocês e pedir penico...

Camila ― (Aproximando-se da janela) É verdade, olha, um monte de gente nas janelas com essas luzes que você tá falando... isso adianta?

Amigo ― Claro que não, mas as pessoas querem ter a sensação de que estão fazendo alguma coisa. Já nos acostumamos: a sobrevivência urbana é um estado de alerta permanente, melhor dizendo, de desvio; estamos constantemente nos desviando dos defeitos da cidade. Esta é a nossa relação fundamental com o formigueiro humano: desviar, achar rotas de fuga, driblar obstáculos; desviamos o tempo todo de alguma dificuldade que a vida na colméia nos impõe.

Dara ― Mas senta, relaxa um pouco, toma um vinho pra acalmar, afinal, agora você chegou no santuário.

Amiga ― Obrigado. De fato, com todas essas velas acesas, aqui tá parecendo mesmo uma coisa do tipo santuário...

Camila ― Hahaha, você não fala a sério nunca? Ainda bem que estamos em casa, ficaria assustada de enfrentar esse apagão se estivesse longe.

Amigo ― Com medo estaria eu, se tivesse que morar aqui no apartamento do seu vô Martos, Camila!

Camila e Dara ― Como assim?!

Amigo ― Caramba, não sei se é a melhor hora pra falar disso, assim, neste breu danado... Vocês só precisam ir numa reunião de condomínio, que o povo conta tudo... Putz, não me olhem com essa cara, quer dizer que nunca ouviram falar da história dos gatos?