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quinta-feira, 22 de maio de 2014

como conheci minha irmã (1)



            Nunca conheci o meu pai. Nem quis. Doador de porra?, tô fora. Já mulher decidi conhecer aos quinze anos, aproveitei uma farra de colegas de classe e fui com eles na zona. Achei que era a hora. Ter sido criado só por mulheres me valeu anos de bullying. Todos sabem do que estou falando, escola, esse lugar selvagem, continuação natural da sagrada missão da família que é nos aclimatar à grande selva da vida.
            “Um dia, Simba, você vai herdar esta bagaça. E vai ser o cu pra conferir, meu filho.” Sabedoria padrão Disney.
            Lembro até hoje do puteiro, ficava num cortiço decrépito de um bairro idem e pobre da zona portuária. Entrava-se no terreno em cunha ziguezagueando por um corredor estreito que desviava ao sabor das irregularidades do chão ou dos barracos dispostos aleatoriamente à direita e à esquerda, rumo ao fundo onde havia um cajueiro, bananeiras, e tufos secos de bambu. Pelo caminho tropeçava-se num sem número de galinhas, cachorros, bugigangas, crianças nuas e latas servindo de vaso pra espadas-de-são-jorge e comigo-ninguém-pode.
            Pelas janelas das habitações, avistávamos as raparigas nas atividades menos sexuais possíveis: cerziam meias e vestidos, trocavam bebês, refogavam comida nos tachos do fogão a lenha, depenavam algum frango, penduravam roupas, fumavam, ou espantavam as moscas, entediadas. A cafetina se arrenegou com o bando de moleques invadindo seu estabelecimento no meio da manhã.
            ― Vou avisando, não quero bebedeira, gritaria, nem de menor fumando maconha com as moças, já tenho pobrema que chegue. Tu aí, bacuri, tá matando aula?
            No meio de uma gurizada que mal tinha pêlo na cara, ela deu de invocar justo comigo. Senti toda a dor da discriminação de cambulho com a frustração de não poder dar uma. Talvez me achasse novo demais, ou mais bobo que os outros, o caso é que madame resolveu me pegar pra Cristo como forma de controlar os ânimos exaltados da galera. Não tinha vagabunda pra toda turma, a ordem era fazer fila na porta dos casebres ouvindo o amigo resfolegar lá dentro. Os briguentos e baderneiros foram ameaçados com o juizado. Eu sobrei jogado numa saleta com um aparelho de som tocando sertanejo no talo.
            Naquela época tinha um amigo, o Felício. A gente vivia grudado pra cima e pra baixo, tanto, que fomos putear juntos pra não dar mole aos boatos maldosos que rolavam. Chamavam a gente de Pink e Cérebro; pelo motivo óbvio de eu ser o nerd da classe, e o Felício, o bobo do rolê. Falava muita abobrinha, não economizava o ouvido de ninguém, de vez em nunca, dava uma dentro.
            ― As mulheres que perderam a Pedra da Roseta, porque, mulher, é um hieróglifo até pra ela mesma ― contava essas lorotas, um imbecil que nunca tinha visto xoxota ao vivo.
            ― Caraca, Felício, de boca fechada tu é um poeta.
            De repente me dei conta que estava sozinho, não se via ou ouvia nem Felício, nem cafetina, menos ainda os outros moleques e habitantes do muquifo. Recortada na cortina da janela à minha direita, a sombra de uma menina esquálida ia e vinha carregando baciadas de roupa. Naquele exato instante enxerguei o mundo como ele é, sem disfarces, uma vastidão triste e deserta e sem rumo. Percebi que aquela menina era um outro alguém à deriva, distante e igual a mim.
            ― Em vez de ficar aí bestando, vai lá pegar uma cerveja pra mim... ei, tá me ouvindo, criatura?
            Um esquilo, um esquilinho lerdo, pasmado demais praquele galinheiro de raposas, a moça me pareceu. A palidez, o silêncio, o rosto fino e ovalado, as mãos de criança desmentindo a expressão carregada das décadas que ainda não tinha vivido ― tudo nela me irritou a princípio. “Você não devia estar neste lugar”, o clichê imortal do cancioneiro brega surgiu na minha mente.
            ― Você... trabalha aqui?
            ― Todo mundo aqui trabalha.
            E isso foi tudo que arranquei dela em meia hora de monólogo.