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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Acumulação primitiva das sombras (final)


            O chiado das cigarras aumentou de tal forma que nos deixou surdos e não notamos a hora em que apareceram por lá. Pareciam estar de passagem, prontos para outros apuros e não para aquele momento. Esperávamos deixar passar os anos para então voltar ao mundo, quando mais ninguém se lembrasse de nós. Tínhamos voltado a criar galinhas e de vez em quando subíamos até a serra para buscar veados. Foi fácil.
            Mas tudo isso durou muito pouco. De repente ficou o vazio, espiando bem, só se viam os que estavam deitados no meio do caminho, meio tortos, como se alguém estivesse vindo pegá-los naquele lugar. Atividades diárias de então: lavar os copos, contar os corpos, e sorrir, com resignação e morna rebeldia. Os vivos desapareceram. Depois tornavam a aparecer, mas de repente não estavam mais ali.
            Para a carga seguinte, tivemos de esperar.
            Desde muito antes de chegar vimos que os ranchos estavam ardendo, das tulhas erguiam-se labaredas negras como se um charco de aguarrás estivesse queimando. As chispas e os rolos de fumo se trançavam na imensidão do céu, formando nuvens alumbradas.
            Os costumes se esgarçaram. Durante a noite era comum, por exemplo, se encontrarem em frente ao totem do nada um homem e uma mulher desconhecidos, e se apoderar deles um frenesi sexual. A praça deserta, um desses lugares que testemunham indiferença mortal pelo destino dos homens, os quais nunca se acostumam a atravessá-los descuidadamente, sem que um nó lhes aperte a garganta e os reenvie ao medo das savanas mortais, das agressões súbitas e degeneradas.
            Uma vez que há campo de batalha, a batalha torna-se inevitável. Uma vez que são inúmeras as lógicas transversais operando na história, o caráter contingente dos fatos deixa sempre aberta a possibilidade do inesperado. Abruptas hostilidades irrompiam com freqüência.
            Ficou c’o cu trancado, lazarento?
            Ih, cara, segue teu caminho, aqui não tem nada procê não.
            Arrombado!
Seu pau-no-cu!
Fica frio que tu já tá pedido.
            É mesmo?, e pra quem que cê fez meu resumo, cagalhão?
            Conheço uma pá de gente no apetite de te fechar, seu filha da puta...
            Valente é?, e por que não resolve é já? Nós dois, aqui mesmo...
            Tá zoró seu merda, tu tá bem louco?
            Vai se foder!
            Vai se foder você!
Décadas depois da cidade ser varrida por uma epidemia de riso louco, um forasteiro chamado Juan Nepomuceno andou por lá. Mas já só encontrou sombras.

Eu sou profeta do agora, disse a menina.

A pura, frágil, família Arkenon.

O quarto se aquietou.

Cada palavra, cada movimento, desapareceram como se fossem ecos do tempo.

A mãe mastigava uma batata, como se não estivesse realmente incomodada, mas olhou.

O pai queria cantar, tossiu para limpar a garganta.

O filho seguia os números do relógio, com três dedos simultaneamente.

Ainda faltavam sete minutos.

Então, finalmente, chegou a hora de fazer um brinde.

Todos se levantaram, animosos e solenes.




quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Acumulação primitiva das sombras (#3)



            A vida passou de morosa, a difícil como nunca. Pensavam nos outros povoados ao norte mais afortunados, construídos em vales floridos, cheios de árvores frutíferas perfumando o ar, e riachos de águas frias e límpidas. Começaram a se dar conta de que viviam numa planície estreita e cercada de montanhas escarpadas, varrida por um vento quente que lhes soprava poeira nos olhos. Encontrar água virou uma batalha diária, porque os poços, até os mais fundos, quase sempre estavam secos. Havia um rio, mas os aldeões precisavam enfrentar uma caminhada de meio dia para chegar lá, e mesmo assim as águas corriam lamacentas o ano todo. Efeito da feroz estiagem, os canais de irrigação pareciam trilhas pedregosas sem sentido; eles trabalhavam duas vezes mais para conseguir metade do necessário para sobreviver.
            Por que você não compra um carro?
            Porque teria que comprar logo dois.
            Ah, ia esquecendo dessa sua mania duplicadora... É verdade o que dizem?, que há uma réplica de cada objeto em sua casa?
            Na verdade possuo um exemplar repetido de tudo em minha vida: dois cães, duas casas, dois infartes, etc., digo principalmente num sentido mental.
            Acontece que um procedimento assim, sem falar no TOC colecionista, superpovoa a realidade com espelhos, sexualiza o mundo no limite do insuportável.
            Sombras são mais confiáveis que espelhos, pelo menos não se põem a multiplicar, inverter as imagens! São os nossos dublês mais simples, veja, tudo pede seu ersatz: o outro nos sacode do sonho da identidade.
            O verdadeiro nó da questão reside na relação íntima entre dois termos, e não nas conveniências ou inconveniências que cercam toda relação. De toda maneira, recaímos no infinito ao dobrar a aposta: um substituto leva ao outro...
            Ah, sim, claro... os incas já conheciam isto, faziam calculadoras sofisticadas, começa com o zero e o um (sempre a dualidade fundamental), então, é só acrescentar novos elementos à seqüência somando os dois anteriores. Deste modo se constroem as catedrais, crescem as ninhadas de coelhos, as pirâmides, os mercados financeiros, as conchas, a disposição dos galhos na árvore, o arranjo das folhas no coração da alcachofra, ou o desenrolar das samambaias. Um simples deslocar da série, a partir da oscilação entre nada e alguma coisa.
            Bem, quando temos um princípio, passamos a vê-lo em toda parte, não?
            Aí é que está, não inteiramente. Passei anos colecionando os duos à minha volta: as duas igrejas, a estrada que se divide, a dupla vida de homens, bichos e plantas; se encontrava um assassino entre os meus vizinhos, logo aparecia um blasfemo, aos santos correspondiam os orates, e assim por diante. Até que surgiu esse obelisco atormentador... é um abismo à luz do dia, algo capaz de ir de zero a tudo, capaz de roer o oco do coletivo: um acontecimento sem sombra. Você não percebe a monstruosidade do conjunto vazio? A essa caixa que apareceu, não responde nada em lugar nenhum!
            Também não é pra tanto, cara, não entendo como é que um acontecimento tamanhamente besta pode tirar do sério tanta gente boa. Que diferença faz uma coisa que não faz diferença nenhuma?
            Se quiser ficar, fique, te dei a letra, por falta de aviso não foi. Pra mim, deu, vou nessa que é bom à beça.
            Foi o primeiro a se mudar. Posteriormente, em conseqüência de fatos que serão relatados adiante, outros moradores foram abandonando o vilarejo; neste período, inclusive, as pessoas já não se mudavam, simplesmente desapareciam. Ninguém mais ouvia falar delas, era como se tivessem sumido do mapa. Relatos de ousada imaginação falavam de anônimos sendo acordados no meio da noite por milícias, espancados, algemados e conduzidos para centros comerciais. Enfim, naquele contexto, crenças estúpidas achavam guarida em cérebros sadios; qualquer um, mesmo sendo rigoroso, racional e inteligente, podia errar gravemente na avaliação da conjuntura.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Acumulação primitiva das sombras (#2)


            Uma omertà secreta e muda, de gestos tensos, havia sido pactuada por todos os moradores desde o sucedido: sem se darem conta, esquivavam a mira do olho no olho. Pessoas outrora ajuizadas escutavam com ansiedade as mais simples cortesias, liam-se os lábios, freqüentemente pediam pela terceira vez para repetir um sim ou um não. O mais x era que se adaptavam insensivelmente (a consciência do problema chegava às raias do camaleônico), muito porque, na prática, se podia seguir fazendo o que se fazia antes, não havia necessidade de interromper nem modificar nenhuma atividade.
            Era uma espécie de magia, mas tão terrível, ou tão falsa, como o truque de serrar a assistente do mágico no palco.

            Procuro palavras com a urgência dos tolos.
            Já tinha percebido, é como se você fosse uma metralhadora giratória disparando signos contra o muro das coisas.
            ... quero atingir o que não sei, o que ainda não existe.
            Isso já deve ter acontecido a você, aconteceu comigo, também eu não sei onde vai dar esta história.
            A gente vai vivendo aos rabiscos, jogando nomes ao acaso, iscando e ciscando pra pegar o que está dentro, fora, ou além.
            É um bocado inquietante esse bloco no meio da vila, assim, surgido sabe Deus de onde...
            Não vai dar, não corre o risco de dar certo.
            Você acha?!
            ... as emoções... elas se chocam dentro de nós como os blocos de gelo no mar dos pólos.
            Tudo é a mesma matéria, mas a palavra se choca com a vida, você sabe.
            Alguns viram quando o furgão branco parou na pequena rotatória da bifurcação da estrada, e desceram os dois funcionários uniformizados que abriram as altas portas traseiras. Depois de instaladas rampas de metal na carroceria, um terceiro ajudante desceu de lá num bobcat, despejando junto ao marco do centro um paralelepípedo de dois metros e meio de altura por oitenta de largura. À luz do fim da tarde de outono, aquela geringonça de aço escovado emitia irradiações prismáticas singulares, a ponto das testemunhas divergirem unanimemente sobre a cor das roupas dos homens, a placa do furgão, e até mesmo a direção tomada ao sair da cidade.
            A princípio pensou-se em algum engano, uma entrega equivocada de alguma agência governamental. Ao cabo de uma semana cada agência pública do país havia sido consultada, cada obra em andamento contatada, pesquisas exaustivas em banco de dados ― as respostas invariavelmente negativas iam exasperando o conselho dos munícipes reunidos em sessão permanente. As primeiras desavenças não tardaram. Agremiações políticas rivais fizeram circular teorias abstrusas sobre manobras intimidatórias, conspiratóras, até mesmo derrisórias, com vistas a tumultuar as próximas eleições.
            Porém, as eleições vieram, e o pesadume daquele evento sem explicação continuou a angustiar os corações da comunidade. O estado de emergência se desfizera, mas as bizarrices do objeto permaneciam como um enigma lançado à cara de todos, interpelando-os sem cessar, desafiando a céu aberto. Fosse qual fosse o metal daquele monólito maciço, nenhuma broca sequer arranhava a superfície dele, dois tratores atrelados por correntes não o moveram um centímetro do lugar. Especulações corriam soltas, o padre admoestava nos sermões, multidões vinham em romaria.
            Até que a novidade cansou, os visitantes se foram, e eles voltaram a ficar sozinhos, entregues ao involuntário monumento da própria afronta. Foi uma criança da vila que descobriu a inscrição em baixo relevo numa das faces do troço reluzente:
            “Nothing Box”.


sábado, 8 de fevereiro de 2014

Acumulação primitiva das sombras (#1)



            E isto funciona.
            Mas funciona, como?
            Funciona, apenas funciona. Tudo funciona, e é isto o mais inquietante, que tudo funcione, e que este funcionar impulsione cada vez mais longe o funcionamento.
A organização moderna do caos.
Pode apostar.
Mas se aqui só há setecentos e poucos habitantes fixos, vá lá, que chegue a mil e trezentos no verão...
            Pensa, são setecentas pessoas, tira as crianças, o bicho gente é estatístico igual aos outros: por volta de dez por cento. Daí que temos uma metade da laranja que não interessa, e vice versa, sobram os outros trinta e cinco com gostos mais ou menos semelhantes.
            Trinta e cinco?
            Desses, digamos que dez não queiram nem pintado de ouro, ainda ficaram vinte e cinco. E sem contar os flutuantes eventuais...
            Vinte e tantos... plus extras?
            Estes últimos são menos regulares, mas mais emocionantes.
            E eu pensando que as cidades pequenas eram monótonas...
            A cidade era realmente pequena, mais para vilarejo que outra coisa. Um quilômetro de extensão ao longo de uma estrada que se bifurcava em Y na direção do sul. No entroncamento de onde partiam as três direções possíveis, ficava a capela centenária, marco zero do povoado; crescendo a partir da pista de duas mãos sem acostamento, um bordado irregular de casinhas e pequenas propriedades se esparramava rumo aos campos e montes circunvizinhos.
            A agência bancária, os correios, um posto de saúde, a igreja, a prefeitura, o mercadinho e o café, eram os pontos focais da escassa população. Apesar do extenso calendário de festejos e eventos religiosos e cívicos, havia em curso um acalorado debate público sobre qual a data mais adequada para se comemorar a fundação do município. No fundo era uma guerra santa, já que o aniversário da cidade coincidia tradicionalmente com o dia de São Simeão, santo da paróquia, embora não fossem poucos os que defendessem oficializar o dia do padroeiro da capela, São Leonardo, o que acarretaria mudar a maior festa da cidade do dia seis de novembro para o dia cinco de janeiro.
            Engana-se quem pensa.
            Não há um único homem que não seja um descobridor...
            E as mulheres são o quê, uma descoberta?!
            Bom, eu falava num sentido geral...
            ... claro, as mulheres costumam estar fora do sentido geral. É o hábito.
            Contudo, sempre há alguém que surge do nada e abre uma porta...
            ... para o infinito. Como esta discussão.
            Odeio adversativas. Contudo deveria ser com-tudo, mas, porém, todavia, no entanto, contudo sempre deixa de fora uma exceção: um mas.
            São os parasitos, partículas da disjunção, da confusão de alhos com bagulhos.
            Muito piores são os expletivos, perfeitamente dispensáveis.
            Senhores, senhoras... voltemos, assim nos perdemos no assunto principal, digo, do assunto...
            Pois é, voltemos e votemos, precisamos decidir entre o seis e o cinco.
            ... uma unidade, apenas.
            Qual, são dois meses de intervalo!
            Dois meses, menos um dia.
            Roma e Pavia...
            O fato é que não conseguimos decidir nada, está acontecendo o que acontece toda vez: não chegamos a lugar nenhum.
            Mas... se isto que chamo de lar, o chão onde descansam os ossos dos meus antepassados, é o próprio lugar nenhum...
            Nós nunca vamos sair daqui, somos os que ficaram pra trás.
            Por quê? Presos a quê?
            Ao dispositivo.
            Dispositivo?
            Não é só o sistema que demonstrou sua eficácia milenar, mas um lento, profundo e implacável enfeiamento do mundo que empobreceu a experiência de todos e cada um, substituindo-a por uma ciranda de desejos mesquinhos e jamais satisfeitos.
            Nada além de sombras, aqui nunca acontece nada.
            Todo indivíduo projeta a si mesmo no que está à sua volta.
            Quando souber de quem sou a sombra, indiferentes serão para mim vida ou morte.