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domingo, 25 de novembro de 2012

Volver (parte 3)



De há muito, o advogado Derville Zago Sanchez Alvarinho deixara de se espantar com a exibição crua dos temperamentos e pulsões da fauna humana que desfilava, ao vivo e a coices, diariamente pelo seu escritório; longe da letra organizada dos pareceres e das leis, das petições e contraditórios, as circunstâncias em que se chocam a vida das pessoas sempre lhe pareceram ocorrer sob o signo da bandalha, do caos, da quizumba. No entanto, mesmo a longa janela de puta-velha na profissão não o impedia de sentir uma onda de hesitação sobre como conduzir aquela conversa; precisava entrar com cautela extra no mérito de um caso tão extravagante quanto inusitado. Qualquer deslize, e a maionese podia desandar feio, feio.
Avaliou em silêncio as expressões dos seus interlocutores: Estelamaris, elegantéésima num tailleur vermelho, por mais que se esforçasse, não conseguia parar de arreganhar os olhos a cada par de segundos; Ascânio ostentava o maior derrotismo, parecia empregado em dia de passaralho, amarrou a catadura botando uma tromba de metro e meio; já Aureliano, não se lhe podia adivinhar coisa alguma pela mina, uma vez que as queimaduras haviam transformado a superfície do seu crânio numa paisagem marciana de pele verrumada e lustrosa repuxada para todos os lados, como um chapisco de cimento sem reboco. Para não chocar tanto, o pobre inventara de se embiocar sob um boné e óculos escuros enormes, disfarce tosco que tornava ainda mais triste a sua escalavrada figura.
― Senhores e senhora, gostaria de iniciar esta reunião, sob todos os aspectos inusitada, mencionando que só os chamei para esta tentativa de conciliação após um exame acurado das alegações e documentos do aqui presente, senhor Aureliano Rubião Filho, até recentemente tido como Adauto Schner. Fique bem claro que não haveria sentido em fazê-los passar por tamanho inconveniente... caso contrário seria profundamente leviano da minha parte juntá-los... não houvesse já realizado uma investigação preliminar... além do quê, hãm, o referido senhor Aureliano me passou informações sobre a empresa em que é sócio da senhora Estelamaris, e para a qual advogo, que só ele poderia saber...
― Desculpe doutor... Aureliano, por que só agora, quer dizer, como é possível uma coisa dessas, assim tremenda?... A gente viu, todo mundo viu na televisão; você estava lá... os documentos, os pedaços, o que sobrou de você; eu tive que ir no necrotério reconhecer... aquilo! ― de batom vermelho, tonalidade cherry bomb, a ex-viúva mulher de dois maridos não se continha, escrutinando avidamente o estropício sentado flacidamente na poltrona giratória em frente a ela.
― Pe, pe, pe, peraí doutor, como podemos ter certeza? Não dá pra reconhecer ninguém numa pessoa nestas condições... pode ser qualquer um atrás da máscara. E outra: como é que fica isso, agora ele é sócio da minha mulher? ― Ascânio entrou na conversa, e em breve todos falavam em cima dos outros, um pega-pra-capar danado.
O doutor Derville custou a serenar os atabaques.
― Por favor, por favor. Bem, vamos às explicações devidas, e em seguida ouviremos da boca do putativo falecido sua versão dos fatos. Sobre os pontos que o senhor Ascânio levantou, devo esclarecer os aspectos jurídicos da situação: um simples exame de DNA com material genético dos filhos será suficiente para restabelecer cem por cento a identidade dele; com isto, revoga-se o atestado de óbito, em seguida, Aureliano retoma a posse plena de seus bens, incluindo a parte na sociedade comercial com a... a esposa. Há aqui um detalhe, a segunda união ainda não é legalmente uma união estável: há a coabitação, mas não se completaram dois anos. Como não houve má-fé nem dolo na situação de concubinato, constituindo, portanto, um ato jurídico perfeito, tudo dependerá da conveniência da varoa, isto é, Estelamaris tanto pode dar seqüência ao antigo relacionamento, como ficar com o atual; uma escolha sobre a qual a lei não incide...
― Tetela ― Aureliano se dirigia diretamente à mulher; o silêncio tomou a sala, enquanto Ascânio, com cara de cheque devolvido, parecia ter derretido na cadeira ―, não tive uma vida fácil nestes dois anos, como imagino que também deve ter sido para você e os meninos, mas lutei muito só pensando neste momento. Além das queimaduras, sofri um grave traumatismo craniano; fiquei em coma por meses, passei um ano numa cama de hospital. Longos dias de tédio, confusão mental e fisioterapia para voltar a andar, comer sozinho, falar. Ainda hoje, só me locomovo de muletas; o doutor Derville deixou lá fora... eu pedi, não queria te dar gastura, queria que tudo fosse o menos medonho possível pra você... Mas isto ― retirou os óculos e o boné ―, é o que eu sou hoje: um homem sem rosto, mas com um passado, e uma família. A nossa família... foi pra este Deus que eu rezei, só acreditava nisso, precisava acreditar nisso pra continuar vivendo, pra não ficar louco de vez... desculpa Estela, é difícil... mas preciso voltar naquele dia de horror. Faça o favor doutor...
Com grande senso dramático, o anfitrião abaixou as luzes do escritório e ligou um projetor cuja tela ficava atrás de Aureliano, incorporando desta forma o narrador nas cenas que se desenrolavam às suas costas.
― A imagem apresenta e esconde no mesmo gesto. Tudo isto vocês já viram: ali, o ônibus após chocar-se com uma árvore no acostamento; aqui, o meu carro parando, ligo o pisca alerta, saio... vou ajudar as pessoas que começam a sair de dentro do ônibus; há uma grande confusão em torno... agora o slow motion pra vermos melhor, daí vem este pedaço em que a câmera chicoteia e perde a região iluminada; então, lá está um homem com o meu paletó dentro do carro... e a seguir é que vem a carreta... É uma noção que só me veio bem depois: eu saí do carro e comecei a ajudar os feridos, o primeiro foi um homem, tremendo de medo ou frio, que agasalhei com o meu paletó e levei para dentro do carro, mas isso acontece no lapso em que a pessoa que filmava perde o foco; quando o enquadramento retorna, há um homem no carro com a minha roupa, e é quando vem a porrada final. Este homem, que ninguém duvidou que fosse eu, era Adauto Schner, cuja família cuidou de mim por engano até há pouco tempo.
― Então... você também, vamos dizer, você também tinha uma outra família?... ― os belos olhos da bígama involuntária arregalaram mais alguns milímetros e a voz lhe tremia.
― Esta é a parte mais maluca da história. De uma certa forma, sinto que elas sempre souberam de tudo, apenas precisavam que tivesse acontecido como os jornais noticiaram. Era melhor que o Adauto fosse aquela imagem que ajudava os feridos antes do atropelamento, não o sujeito chorando dentro do carro e do paletó de outro homem: estaria vivo e ainda seria um herói. Por motivos que me escapam, aquela mulher e aquelas duas meninas, que durante dois anos brincaram comigo de sermos os Schner, queriam muito acreditar que aquele homem semi-destruído numa UTI tivesse um dia sido capaz de tomar uma atitude. Fui preparando “mulher” e “filhas” aos poucos; fatalmente chegaria a minha vez e a minha hora de deixá-las, e elas tinham que começar o luto adiado... na verdade, pensando agora, o Adauto passou a incluir um pouco do Aureliano; mas também é verdade que preciso dele: pra que eu volte à vida, ele tem de morrer... bem, de toda maneira, vai ser necessário abrir a minha sepultura, devo a elas um corpo.


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