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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Poranduba (parte 2)


Ela tinha ouvido bem: homem. Honorato não domara sob a batina o homem agreste que sempre tinha sido; irmã Maria haveria de o descobrir com o passar das cheias e vazantes: a colaboração entre ambos foi se estreitando, o cântaro que tantas vezes foi à fonte acabou por perder a asa e o que tinha de ser acabou sendo. Aliás, na imensa planície amazônica, devastada por extensas plantações de soja, coberta de tabuleiros e frondosas matas, ilhadas entre pastos descampados sem fim, cortada por rios, igarapés e várzeas, onde abundam a quina, a piranhuba, a salsa, o pau-rosa e a maçaranduba, em cujos lagos e lagoas estendem-se alvos garçais, esta é a regra de ouro: o que tem de ser, é.
― Maria, antes de o galo cantar, levante e vá até a beira do rio, lá vosmecê vai achar o corpo de uma sucuri; não arreceie, deite-lhe um pouco de leite na boca e, então, dê-lhe uma boa cutilada no flanco para arrancar sangue do bicho.
― Virgem Santíssima, mas que despropósito é esse, Norato?...
― Faça como lhe disse e não tenha cagaço, que amanhã virei ter contigo liberto desta maldição que tanto me aflige.
― E nunca me falou disso por quê, não lhe confiei meu coração se reservas?
Àquela altura, ambos viviam o que os caboclos chamam de ‘casamento verde’, uma relação natural e pecaminosa que já durava um ano, e Maria, por mais tratos que desse à bola, não encontrava uma maneira de dizer-lhe que estava ‘filhada’ dele. E agora essa.
Madrugadinha lá foi ela, se embolando nas quiçaças, arrastando a custo as alpercatas e encharcando as pernas até às canelas no igapó. O lamaçal encontrava-se revolvido, com um sulco bem cravado no meio, rumo da beira ― o monstro devia ter arrastado algum barrasco para dentro das águas, a lama do tijuco fedia a pitiú de cobra. Jiboiando na enseada da praia, lá estava o bicharoco medonho com a cabeça bem iluminada pela noite de lua crescente.
Maria quedou-se estática, a cobra parecia como que morta, mas naquele momento desceu o quiriri; o terrível silêncio noturno, a hora morta em que a floresta se enche de misteriosos ruídos surdos e até o coração do mais valente sertanejo esmorece. Apavorada, ela ganhou as bredas, correu, correu, correu até o fim do mundo, e nunca mais voltou.
Em vão procuraram por ela, Honorato não economizou ajuda de caçador, garimpeiro ou barqueiro, vasculharam-se capoeiras, lagos, matagais e ilhas, peraus e paranás; nunca mais ninguém viu ou ouviu falar de irmã Maria Auxiliadora do Coração de Jesus.
Meses depois destes acontecimentos, chegava na zona de Santarém mais uma rapariga da vida com um filho a tiracolo, a noviça Joana; vestida sempre de preto, atraía uma boa clientela que não se cansava de lhe perguntar sobre um enigmático ‘H’ tatuado no cóccix. Cada um obtinha dela uma resposta diferente.

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