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sábado, 11 de agosto de 2012

O corno do Bife (epílogo)

(foto: José António Doutel Martins Coroado)

            Ao fim e ao cabo, depois de calcorrear as casas dos parentes, a Mãe deixou os miúdos com os pais dela, figuras colossais que se gravaram no Menino como tatuagens na alma, e de quem nunca deixará de se lembrar pelo resto dos seus dias; na despedida a mamã disse que eu já era grande (oito anos!) e devia ser forte e ajudar a tomar conta do meu irmãozito, que voltaria logo, e, enquanto e não, deveria obedecer aos avós; como se precisasse: naquela época, um pirralho refilar para um adulto ― que dirá desobedecer! ― era tareia na certa; a Avó não era de economizar nas estampilhas, mas educava mesmo era por meio de seus impagáveis adágios, os quais sempre trazia como que na algibeira a propósito de todo e qualquer assunto: “Homem pequenino é maroto ou bailarino”, “Ovelha que berra, bocado que perde”, “Quem não come por já ter comido, não tem doença de perigo”.

Já o Avô era de fala pouca e certeira; demorava uma eternidade a comer e a contar suas histórias da tropa, enquanto amassava côdeas de pão sentado no escano da cozinha onde se defumavam as alheiras, o presunto e as morcelas; alto e forte como um embondeiro, derretia-se com os netos, jogava à bola com eles dentro de casa (talvez lembrando de seus tempos de guarda-redes); nunca o vi sair à rua sem chapéu, nem ir à missa; preferia os cavalos aos homens e dizia que as motas eram cavalos cegos, pois faziam tudo que as bestas que as montavam queriam sem refugar; foi ele, o Senhor Morgado da Aldeia dos Quatro Montes, que me contou a mãe das verdades dolorosas: “Há só dois tipos de homens: pregos e martelos”; a outra grande revelação, para a qual não estava ainda preparado, veio da Avó:
            ― Comunistas, o catano, o que eles são é COMODISTAS; não gostam de pegar na enxada e ir ganhar a jeira como toda a gente. Ala moleiro, que quem não trabuca, não manduca! Que me venham por cá esses emplosmeiros com as fantochadas da reforma agrária, a ver se não lhes meto o sacho nos cornipos!
Eles não sabem que o sonho
            É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer
            A aldeia, que mal e mal conta um milhar de viventes, é um peculiar universo em miniatura, relíquia do Portugal d’antanho; não se escuta aqui o ratatá da metralha como em Angola, quando muito, zurra um burro ao longe e outros replicam logo a seguir; a água potável, ainda vão as mulheres buscar à bica e trazem-na em cântaros sobre rodilhas na cabeça; o sentimento predominante dos aldeões é de apreensão, quando não de reprovação aberta, à pândega lúdico-política do país depois da Revolução de Abril; e principalmente quando se fala da temida reforma agrária ― disseminou-se a crença de que o cidadão possuidor de duas vacas, por exemplo, venha a ter uma delas confiscada pelo governo...
            ― És um labrego do caraças, ó Dez-pras-Duas, não vês que isso é o socialismo? O que nos vão engrampar é com o comunismo, em que o governo fica-te mas é com as duas vacas, pá!...
            O Dez-pras-Duas tinha os pés bem abertos, como ponteiros de relógio, em vez de paralelos como todo mundo, aliás, quase todos em Quatro Montes carregam uma alcunha oriunda de características físicas, morais ou de alguma anedota da pessoa; uma forma de a comunidade reafirmar seu poder, até mesmo sobre o Registo Civil e a vontade das famílias; assim, havia a Chóia, o Merujas, a Lailai, o Saltão, o Caga-na Saquita, o Choninhas, o Caga-no-Almude, o Zé-das-Migas, a Marianinha-do-Cabaz, o Amândio-Pé-de-Chibo, a Laura-dos-Pompons, o Quico Meleiro e o inacreditável... Putaria (!); efectivamente, os apodos não eram palavras como as outras, pois que a ninguém acontecia de pronunciar a nomeada do professor da primária com risotas ou ironias, e até mesmo às crianças era permitido usar a alcunha tremenda do Sô-Psor ― logo nós, que jamais nos ocorria de andar a dizer asneiras graúdas na frente dos mais velhos.
            O Menino não tinha alcunha, compartia o título do Avô (que vinha do tempo da guerra civil) no diminutivo: Morgadinho, dizia o Quico Melo, maluco da aldeia; mas então, no recreio da escola, a palavra lhe é dita, mais que isso, cuspida na cara pelo Armindo Moncoso: “Retornado”!; escusava legenda ou explicação, nem do complemento “de merda” precisava, estava tudo dito; ómessa, que culpa tinha eu de Portugal ter aumentado dez por cento da sua população em menos de um ano, ou de ter nascido português de segunda classe?, e o coitado do meu irmão, que não dormia de medo à noite e precisava que eu lhe contasse histórias, tinha culpa?; éramos sobreviventes de um desastre mental, tínhamos sido atropelados pela marcha insana da história com H maiúsculo ― e também pela história de um povo iludido pela vã glória de mandar.
            Tirei o cinto e comecei a rodá-lo acima da cabeça; era o combinado da nossa guerra dos botões: os “turras” giravam os cintos até se acertarem mutuamente, encurtada a distância, a peleja era na mão, no chute, no arranhão, na mordida, no cuspe, embolados no chão, como fosse; o importante era não fugir da luta, não amochar, alombar sem tugir nem mugir, porque senão, era humilhação para o resto da vida; o Menino provavelmente apanhou, já que era um lingrinhas sem a vocação de amachucar os outros, mas não tinha sido desonrado, que era o que importava; o estrago, porém, estava feito: agora sabia que não ia poder fingir que pertencia àquele mundo, nem, talvez, vir a pertencer a nenhum outro; entre tragédias maiores e menores à minha volta (“retornados” sem teto, pão ou parentes, traumatizados de guerra, um tio que perdera um braço), até que o meu drama era pequeno, mas, por outro lado, este meu pequeno drama era, e ainda é, tudo que tenho.
            Acontece que aos americanos e aos ingleses não lhes interessava ter uma Cuba européia e, assim como fizeram na Itália e na América do Sul, trataram de neutralizar os comunas lusos; a modos que resolveram pressionar a favor dos “retornados” e até lhes adoçaram a boca com rebuçados, afinal, eram o contingente mais anti-esquerda disponível; foi assim que o IARN, instituto de apoio ao retorno dos nacionais, começou a distribuir pelo país todo alimentos doados pela ONU; era uma festa em Quatro Montes: na Casa do Povo distribuía-se leite em pó, embutidos, chocolates (divinos), arroz, açúcar, cereais em flocos, farinha, tudo de qualidade infinitamente superior ao que conhecíamos; o irmão do Avô, tio que havia morado também em Angola, onde tivera um comércio no Cacuaco, também lá ia retirar seus víveres; era um tipo fiche com os miúdos, um contador de anedotas sujas no café e um belo rapioqueiro com as mulheres; andava sempre atrás do gado faldriqueiro, repetia a Avó.
            ― Ê pá, devagar com o andor, não me esbodeguem as caixas... é tudo atamancado às três pancadas nesta terra; olha só o que aqui vai, leiam: Ce-as-cás, le-os-lós... Corned beef; hahaha, isto é pro corno do Bife!
            Riram ao bom rir, porém, estava armada a maca: a lata de carne moída da ONU passou a ser a lata do Bife, ou melhor, do corno do Bife; que, evidentemente, não gostou nada quando soube da pilhéria; fosse por ser corno, ou ter sido, ou porque não lhe agradava que um explorador de pretos, um “retornado” ― ainda que pertencente a família local de certa fidalguia ― andasse a falar barato de gente honesta; o Bife agora andava de navalha à cinta e dizia a quem quisesse ouvir que ia fazer a barba à barriga do Tio-Avô; este, do seu lado, respondia que, se nunca tivera medo aos terroristas das colónias, não ia ter de um patego que não entendia um trocadilho; no fim de semana seguinte iam-se os dois encontrar numa feira de animais no Toural; o Avô estava mais calado que o costume, preocupado com o irmão naquela manhã ao atrelar a Carriça, o Menino ia com ele à feira, excitação e terror compunham a expectativa do desenlace.
            Que não houve, quer dizer, houve, mas foi pacífico; os dois homens puseram-se logo de acordo, se abraçaram e foram tomar uma carraspana na adega de um amigo; juntaram-se os dois à esquina a tocar a concertina e a dançar o solidó; o Avô ainda passou lá e o Menino os viu a tomar uma ginjinha da boa.
            ― Ó seu Teixeira, que isto não são modos de se falar de um cristão... terá esquecido o engaço?, veja que aqui em Portugal há modos, e cousa e tal, não é como lá na África, onde íeis à peida das pretas, mulatas e cabritas, e ficavam-se todos nas tintas...
            ― Ó Bife, deixa-te de lérias, pá. Sabes que não te chamei de corno a ti... ao fim e ao cabo, nesta aldeia o que não falta é disso. Também pudera! Não deixais haver cá uma casa-das-primas, dá no que dá: andam todos com todos, e já não se pode dizer quem é corno e quem não é; se queres saber, o padre ainda é o mais honesto... só tem uma que eu saiba. O ser humano é o mesmo em todo lado, não é Quatro Montes, ou a África, é o país: isto aqui é e sempre foi uma putaria do carago!

            As guerras são feitas com propaganda, exércitos, soldados, batalhas, bombas e tiros, mas quem as ganha são sempre os poetas; Agostinho Neto, que ganhou a guerra em Angola, era poeta, fraquito, mas era; o Menino descobriu, ouvindo a rádio naqueles anos loucos, a força irresistível da poesia musicada; ele descobriu que a verdadeira pátria não é sequer a língua, como dizia o poeta, mas a poesia; a verdadeira pátria não está nos hinos nacionais, essas xaropadas canalhas sempre a falar de vitórias antigas, dias de glória, pavilhões sagrados, canhões, sangue e nações valentes e imortais; num belo dia de outono, o menino descobriu o verdadeiro hino nacional português, uma canção que termina assim:
            Eles não sabem nem sonham
            Que o sonho comanda a vida
            E que sempre que o homem sonha
            O mundo pula e avança
            Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança

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