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domingo, 2 de setembro de 2012

a casa das mil portas (parte 1)




            Esta é uma casa pequena, térrea, espremida num daqueles terrenos-lingüiça de pouco espaço interno e externo, mas acredito que nunca acabarei de conhecer cada um dos cômodos que há nela. Na verdade, jamais deixei inteiramente de viver aqui desde que vim ao mundo, mas também nunca deixei de tentar escapar desta ratoeira desde que nasci; nesta última vez, voltei para cá em meio às árvores já floridas, com a nespereira do quintal zumbindo de abelhas e na rua os ipês sem folhas exibindo seu ouro invernal. O céu está tão azul, o ar seco tão cheio de luz dourada, que os olhos, acostumados à descolorida penumbra do interior, parecem cegados pelo esplendor de uma demasiado feliz, quase insuportável, intensidade, como os de um caburé surpreendido pelos raios do amanhecer, bate as pálpebras e procura, aflito, seu velho campanário.
            Da varanda avisto ruas baldias e escuras que são menos solitárias que a minha vida, mas que ainda possuem um encanto, uma harmonia arqueológica, conservada ou reencontrada, a contrastar com o empalidecimento silencioso deste interior fechado às pessoas e silencioso à fraternidade, sem roupas no varal debaixo do sol, convivendo diariamente com a pedra dura das palavras da minha mãe, palavras que fatiam o compacto do mundo, o real da existência ― e o fio da esperança. Em todo canto que a vista alcança ressurge a impressão de uma antiga cidade que não existe mais, substituída por esta outra abstrata, suntuosa e frenética vitrine de marionetes angustiadas; cada passante parece um morto-vivo, sobrevivente solitário após um surto de peste; por todo lado constroem-se reluzentes prédios de cristal e aço, as galerias rebrilham, as lojas regurgitam: todos são heróis, todos estão no mostruário, entediados protagonistas de suas frágeis ou férreas teias sociais.
            Não sei como explicar de outra maneira: as portas da casa dos meus pais abrem sempre para um quarto novo, e neste outro, até então desconhecido, cômodo há uma nova porta, que abre para mais um quarto com uma porta, e assim por diante até enlouquecer; não saberia dizer se há um limite, o que posso garantir é que são quartos e portas comuns, como os de uma outra casa qualquer deste bairro comum; aliás, como eram as casas deste lugar antes que a cidade tivesse engolido o bairro inteiro e vomitado impressionantes boulevards de compras, serviços, templos e condomínios fechados ― só este pequeno quisto proliferante de habitação sobreviveu entre dois edifícios multiuso de alto padrão; a vida foi para um lado, e ficamos eu e a minha mãe anquilosada do outro, teimosas e lastimáveis relíquias de uma extinta era geológica, arrastando o passo como se pudéssemos alentar a marcha dos acontecimentos.
Acompanhei o processo todo, por assim dizer, da janela: os vizinhos se mudaram para bem fora da região, até meu irmão sumiu logo que pôde; sobraram os gatos-pingados habituais: sapateiro, borracheiro, o mercadinho, a banca de jornal e a paróquia. Nunca consegui conversar com o meu irmão sobre as esquisitices da casa, ele sempre ficava com pressa para fazer alguma coisa importante e urgente, e deixava o assunto para outra hora; hoje mora longe com a família e jamais nos visita, manda dinheiro todo dia cinco; parece que a casa dele é normal, e agora já não falamos sobre assunto nenhum. Quando criança, tentei comentar a estranha particularidade com alguma das raras visitas e recebi como resposta que não havia problema, afinal, toda a casa tinha suas manias, era só voltar pelo mesmo caminho que ninguém se perdia; minha mãe, do outro lado da sala, me fuzilava com o olhar.
            Papai morreu aos poucos e em silêncio, dia a dia engordando metodicamente, pacientemente, até não sair mais do quarto, primeiro, e depois, quando ultrapassou os cento e cinqüenta quilos, sem sair sequer da cama, onde o banhávamos e higienizávamos como um bicho dócil, trocando duas vezes por dia as roupas e lençóis; no criado mudo havia um revólver que não conseguíamos tirar dali nem durante o sono dele, sempre achei que o usaria para tirar a própria vida, mas não, foi-se dormindo, em paz como um anjo roliço. Parada cardíaca. Morreu sem fazer barulho, sem explicar, nem se lamentar; nenhum gesto de revolta, explosão ou arrependimento, conformado com um estado de coisas que não teve forças ou não quis afrontar, subserviente até o último momento à atitude fria e sarcástica da minha mãe.
            ― Esquece o revólver, deixa. Esse aí? Não tem coragem, nunca teve, não ia ser agora...
            Acho que a minha mãe começou por esquecer a própria idade ― eu mesma já não lembro quando faz anos, nem quantos ―, até que terminou por se esquecer da compaixão: não chorou no enterro dos pais, dos irmãos, do marido, e dos cães e gatos que, aos poucos, deixamos de ter nesta casa, onde os pássaros não vêm e nem pimenteira se cria. Não tenho a mais leve memória da minha mãe sorrindo ou chorando. A pessoa que me trouxe ao mundo é uma máscara de ressentimento sem começo e sem causa; aos domingos, supremo castigo!, tenho de a levar à missa, as suas dificuldades de locomoção transformam o caminho de ida e volta num suplício em câmera lenta, os comentários que faz sobre as pessoas que encontramos na rua, revelam os abismos de fel que rumina eternamente, como a esfinge do deserto.
            ― Olha lá, a Peluda, gasta o que não tem nos lasers e não adianta, continua a complexada de sempre... Aquele lá, saindo do carrão, todos sabem que tem o pinto pequeno, pequeno e torto, como uma vírgula, belo monte de merda: trai a mulher, manipula as pessoas, é fofoqueiro, se acha importante e respeitado, mas nem sabe que a filha está grávida. Essa que nos acenou, já lhe troquei os cueiros, uma bela de uma caga-regras, preguiçosa, puritana, alcoólatra, sempre vem com lição de moral para os outros sem ter nenhuma ela mesmo, não tem amigas, e o marido tem um caso com outro homem...um mecânico!
            ― Mãe!
― Que é?...
― Você não tem nada de bom pra falar dos outros?
― Cala a boca. Você é uma árvore sem frutos.

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