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sábado, 22 de outubro de 2016

Cristiania (1)



            Enquanto caminha pelos corredores atafulhados de gente da estação Sé na interligação trem-metrô ― um caminho que mal escolhe, apenas se deixa levar pelo fluxo ―, tem a súbita sensação de que nada daquilo faz o menor sentido. Tudo parecia com mais um dia normal de serviço: acordar, tomar café, pegar o lotação na Cidade Ademar, depois o trem em Jurubatuba, 2 conexões de metrô, descer na estação São Bento, andar 3 quadras a pé, entrar no edifício Cristiania, trocar de roupa no almoxarifado, e assumir seu posto de trabalho. De repente, no meio da rua Varnhagen, não conseguiu seguir em frente. Em vez disso, parou numa lanchonete e pediu emprestada uma caneta e sacou papel do porta-guardanapos.
            Muitas vezes essa idéia havia aflorado seus pensamentos, mas nunca com tamanha limpidez e urgência. Experimentou diversas versões rascunhadas até escolher a mensagem mais simples para explicar a sua decisão daquela manhã. Afixou o papel no quadro de avisos ao lado do elevador e deixou o emprego de ascensorista que ocupou por tantos anos sem atrasos nem licenças médicas. Seus colegas mal podiam acreditar no recado breve com o qual se despedia definitivamente: “Não posso continuar no mesmo lugar. Deixei o uniforme dentro do armário. Tá destrancado. Adeus.” E assinava.
            Andou pelas ruas do centro velho sem rumo durante horas, cada esquina, cada fachada, as lojas, bancos, até mesmo os vendedores ambulantes, lhe apareciam de uma forma nova, transformada pela quebra repentina do hábito. Como fora possível não ter reparado nas pequenas maravilhas decrépitas que o cercavam diariamente sem pedir afago ou atenção? Por que nunca se dera ao trabalho de assistir a uma missa cantada no mosteiro? Ou mesmo uma parada breve no Largo do Café? Concluiu algo mortificado que andara por aquelas ruas estreitas e sem carros de olhos baixos, deixara de reparar nos becos de geometria irregular, no pavimento enigmático, distraído de alguma verdade agora revelada, fulgurante e sem álibis.
            Era como se todas as coisas falassem com ele. O toque do celular arrancou-o daquele devaneio que, entretanto, tinha muito de um despertar.
            ― Fala Josias.
― Rapaz, que bicho te mordeu? Endoidou de vez, foi?
― Nada, não. Só cansei da porra toda.
― Ah, cansou da porra toda?! Esqueceu que tu tá quase pra aposentar? Deixa de besteira e vem pra cá.
― Vou não. Tô de saco cheio, isso não é vida.
― Que foi que te deu, homem de Deus? Vem já que eu peguei teu lugar, e dei uma desculpa pro encarregado. Arranquei o bilhete maluco que tu deixou lá, só uns dois ou três...
― Dá mais não, Josias. Sabe quando você tá dormindo no meio da noite, e de repente a geladeira pára de fazer barulho? Então, é como isso: nessa hora o que te desperta não é o barulho, mas o silêncio que fica.
― ...
― Você tá me ouvindo?
― Virgem Santíssima, o homem endoidou foi de pedra mesmo! Moço, tu deu pra beber logo de manhazinha, é?
― Bebi nada, não. Tô mais são que nunca. Escuta, você podia me fazer um último favor?
― Último favor? Homem, não me diga que vai...
― Assossegue que não vou fazer bobagem nenhuma. Sabe aquele chapeuzinho que caiu da fachada?
― Chapeuzinho?Barulho de geladeira? Você não tem mais idade pra fumar erva danada, meu irmão.
― Então, é o chapeuzinho do “A”, do primeiro “A”. O verdadeiro nome do edifício é Cristiânia, o chapéu caiu faz um tempo e nunca consegui botar de novo. Você faria isso pra mim?


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