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domingo, 2 de maio de 2010

as 3 medicinas: uma lição da Doutora Ivânia

“Isto aqui hoje está um Vietnã”.

É assim, na linguagem rude dos pronto-socorristas, que se define um plantão particularmente movimentado. O atendimento de urgências de sábado à noite, então, costuma ser a estrela da companhia: há sempre o invariável baleado da noite, os suicidas, as overdoses de drogas várias, os bêbados, ocasionais e contumazes, os atropelados, os mendigos e travestis agredidos, os solitários em crise, as crianças caídas da laje, os simuladores de doenças, os piripaques dos corações partidos ― chamados eufemisticamente de DNVs, distúrbios neuro-vegetativos ―, além, é claro, das tragédias comezinhas dos infartos, crises hipertensivas, ataques de asma, de pedra nos rins, derrames, pneumonias, comas diabéticos, embolias e etceteras que compõem uma típica jornada no PS.

A metáfora bélica não é abusiva, na verdade reflete o clima e a sensação de todos que participam de uma equipe de intervenção de emergência. Às vezes substitui-se o Vietnã da frase acima por Iraque, Bósnia, Afeganistão, Carandiru, Complexo do Alemão, Nicarágua, Sudão, Ruanda ou qualquer massacre que esteja no noticiário. Mas o fato nu e cru é que se trata mesmo de uma guerra; com duas fundamentais diferenças: no hospital luta-se pela vida e, ao contrário das outras, a guerra pela vida parece nunca acabar. Uma UTI também é uma guerra, mas uma guerra fria, calculada, asséptica até certo ponto, de estratégias “diplomáticas” e tecnologias “limpas”; já o PSão de hospital publico é um cenário de batalha campal: há choro, gritos, sangue, fedores indescritíveis, rezas descabeladas, baixeza e heroísmo extremos. É o front.

Naquela noite tinham deixado abertas as comportas do Inferno. A cobertura de um shopping center desabara no final da tarde e um afluxo inacreditável de feridos somou-se à já espessa fauna de habitués do sabadão. Toda a rede de atendimento de urgência pública e privada ficou superlotada, médicos saíam de suas merecidas folgas para ajudar, enfermeiros e atendentes acorriam fora da sua escala para dar apoio aos colegas sobrecarregados, as rádios e os telejornais martelavam informações desencontradas sobre o número de mortos e feridos, parentes faziam romarias desesperadas aos IMLs e hospitais. Uma quantidade inédita de pessoas espalhadas pelas macas, cadeiras e até no chão dos banheiros impediam a circulação no PS da Santa Casa de Misericórdia. Era O Horror, e eu estava lá, interno de plantão da cirurgia.

O curso de medicina dura seis anos; nos dois últimos, o estudante torna-se interno do hospital-escola; passa a acompanhar os médicos assistentes e residentes em especialização nas diversas áreas e serviços. É o batismo de fogo, o duríssimo aprendizado prático da medicina. O interno é rei para os estudantes de medicina e peão para os médicos; tudo que faz está sempre sob a supervisão dos mais experientes e treinados, além do que, não sendo ainda médico de fato, não pode assumir decisões e responsabilidades que competem aos graduados. Mas aquele seria um plantão excepcional em muitos sentidos; fui enviado ao front interno: uma chamada da enfermaria cirúrgica avisava que havia um paciente chocado no 2º andar, o DC2. Com os residentes e assistentes todos em sala de cirurgia, restava mandar dois peões, eu e uma outra interna da clínica, minha colega de turma Ivânia Muniz. Era uma das melhores alunas da minha classe.

Se possível, mandariam um residente depois para nos ajudar. Se desse. Fiquei acabrunhado ao saber que era um paciente operado pela minha área, Ronival, um senhor de 79 anos, cardiopata, operado de uma inflamação nas vias biliares. As cinco grandes áreas cirúrgicas cobriam um dia fixo do plantão de cirurgia no PS durante a semana e rodiziavam os sábados e domingos entre si. Eu estava passando pela área 1, a que cuidava de vesícula, pâncreas, vias biliares e da segunda feira; a área 2, do fígado, cuidava da terça; a área 3 do esôfago e da quarta; a 4, colo-procto, da quinta e a 5, do estômago, na sexta. Tudo isto pode parecer esquisito para os não-médicos, mas que funcionava, lá isso funcionava. Notei que, apesar da hora tardia, havia familiares do paciente no saguão do andar. Chegamos rápido à ala masculina, uma sala ampla à esquerda no final do corredor do DC2.

As enfermeiras se dirigiram a mim, claro, homem, branco (sim, Ivânia, muito antes das cotas raciais, era uma das poucas pessoas “de cor” entre uma maioria de “bem nascidos” e orientais); além do que, era interno da área, eu deveria assumir o comando naturalmente. Só que eu estava com-ple-ta-men-te apavorado.

― Doutor, paciente do leito 203 em choque, pulso irregular, pressão “pinçada” de 7/5 e caindo... já levamos o carrinho de parada para a sala ― ignorada pela enfermeira-chefe, Ivânia ignorou a ignorância, passou por cima da grosseria implícita, reconheceu o meu apagão geral e assumiu com firme delicadeza o controle do procedimento. O senhorzinho agonizava, o rosto pálido como cera, torporoso, respirava em arquejos profundos e lentos, os dedos dele estavam azulados, indicando que o sangue não chegava direito nas extremidades do seu corpo, e o coletor da sonda urinária encontrava-se vazio. Ela aspirou cuidadosamente o nariz e a boca desobstruindo as vias aéreas de um muco seco que se acumulava.

― Pega o ambu, mas antes de ventilar vamos primeiro precisar dar volume pra ele, humm, tá com vasoconstrição... perdeu a veia periférica do soro, provável sangramento interno pós-cirurgia, cardiopata prévio em flutter atrial crônico... entrou em arritmia ventricular e está quase parando... ― formulava hipóteses sensatas e estabelecia condutas em conformidade com elas; caraca, ela já era uma médica de verdade! Um doente do coração em choque hipovolêmico tem dois problemas sérios: primeiro, falta sangue para bombear pelas veias e artérias, o que leva os principais órgãos a “seqüestrar” o pouco que existe dentro deles para se alimentar, portanto, é vital dar bastante soro de modo a manter os vasos expandidos e evitar uma coagulação geral. Segundo, nos cardiopatas crônicos, os átrios do coração já vivem em regime de arritmia, que, se comprometer a verdadeira bomba que são os ventrículos, faz o coração perder o ritmo, a força e acaba parando.

Com as mãos tremendo e o ‘seu’ Ronival agitado, não me foi nada fácil acoplar o bocal do ambu, uma espécie de bexiga em forma de mamão, e insuflar manualmente os pulmões dele. Ela pegou uma agulha de punção e achou de primeira a veia subclávia esquerda, fazendo a seguir um ângulo de 90 graus para a direita e instalando o cateter (intracath) que agora permitia ao coração irrigar com soro glicosado a 5% os tecidos em sofrimento. Entretanto, a enfermeira tinha conseguido realizar um eletrocardiograma que confirmava a suspeita de arritmia ventricular com bradicardia, ou seja, os batimentos do coração tinham caído a 35 por minuto. Abaixo disto, até o cérebro começa a ficar desabastecido de oxigênio e nutrientes.

― Essa mesma, bem fininha, me põe 1 miligrama de noradrenalina ― espetou a seringa direto no equipo de soro; olhou o relógio, em 5 minutos iria repetir o gesto. As drogas jogavam o papel de primeira linha na reanimação cardiopulmonar naquela época, elas estimulam a contração do músculo cardíaco e, até certo ponto, ajudam a estabilizar a pressão arterial. Não estava adiantando; a PA ficou inaudível e a freqüência caiu abaixo de 30 batimentos por minuto. As mãos dele permaneciam frias, da fronte porejava um suor pegajoso e a respiração tinha se tornado rápida e superficial. E então, a primeira parada.

― Por favor, regula pra 300 Joules e já deixa a sonda traqueal aqui do meu lado, tá?... Agora, vamos! ― cada carga sacudia o corpo inerte, a cama rangia sob o peso dos arrancos; nas paredes descascadas da enfermaria em silêncio reverberava o zumbido baixo do desfibrilador. Desfibrilar o coração é como reiniciar um computador eletromuscular apostando numa resposta nos próximos 4 minutos, depois do que, instalam-se lesões neurológicas permanentes.

― Voltou, olha aí, ele voltou... ótimo, estabilizou em ritmo sinusal, a sistólica deu 9?, maravilha, me passa o afastador e o laringoscópio que vamos entubar ― ela pedia, orientava, solicitava, tudo com objetividade e savoir-faire, desprovida da famosa arrogância médica que eu via aflorar em alguns chefes diante das situações críticas. Não elevou o tom da voz uma única vez, não deu esporros inúteis, como se diz no futebol, jogou com a bola no chão e de cabeça erguida; sem um chutão, sem uma canelada. Àquela altura, se ela mandasse, a equipe toda plantava bananeira sem piscar.

“Entubar”, no jargão, significa fazer passar uma cânula da boca para a traquéia, abaixando a glote de modo a não invadir o esôfago, com o objetivo de conectar um respirador que vai inflar o pulmão como um fole. Liguei o Takaoka e comecei a regular a infusão de soro; porém, nada de as coisas melhorarem. A pressão continuava instável e o ritmo também; fizemos duas hipóteses: o miocárdio dava sinais de não estar suportando o esforço e, para complicar, os remédios que demos para aumentar as contrações também relaxam os vasos, puxando a pressão para baixo. Ivânia aplicou rapidamente o antídoto: atropina.

Como desgraça pouca é besteira, o respirador quebrou ― aquelas malditas geringonças verdinhas engripavam a toda hora!― e, enquanto trocávamos o aparelho, sobreveio a segunda parada. Tudo recomeçou: massagem cardíaca, desfibrilação, ressuscitação, nova parada; nada do que fizemos conseguiu trazer o senhor Ronival de volta. Ficamos 1 hora e 40 minutos tentando reanimá-lo até nos conformarmos com o óbito.

No hall do andar, junto ao elevador das macas e da escada, estavam o filho e o neto dele; descobri que se chamavam Ronilson e Renato. Conversei com eles, expliquei o que tinha acontecido e procurei consolá-los como pude, enquanto a minha colega registrava no prontuário as nossas condutas. Foi a primeira vez que contei esta história: falei da grande médica que brigara feito uma leoa pela vida do pai e avô deles até o fim. Saímos pelos corredores góticos que contornam a capela de volta aos nossos postos no PS; eu estava um farrapo humano, uma angústia fodida a me apertar o peito e uma bola de choro que subia e descia na minha garganta. Senti que falhara no teste decisivo, como dizia o Michael Jordan, são os jogos decisivos que separam os meninos dos homens. E eu tinha fracassado; nem menino era, não passava de um enganador de jaleco, um cagalhão.

― Ainda bem que era você que estava comigo nessa.

― Co-como assim?! Você viu muito bem que amarelei na hora H, você sim, mandou muito...

― Que besteira, nós acabamos de ser caçados, ali não teve caçador; perdemos uma vida humana, nada compensa isso, além do mais, eu não tinha condições para dar assistência aos parentes daquele senhor como você fez ― só não caí das nuvens porque me encontrava firmemente atolado na lama.

― Ainda acho que não fui muito útil lá...

― Veja as coisas por este lado, cada um faz aquilo que sabe fazer; se cada um tivesse feito a sua parte direito naquele shopping, não teríamos essa loucura no PS lá embaixo. Há 3 tipos de medicina: a tradicional, que cuida do “antes” da doença, a que estamos praticando aqui, que intervém no “durante”, e a reabilitação, a medicina do “depois”. Você é um médico do “depois”.

Descíamos a rampa ao lado da Provedoria que dava acesso ao conforto médico e terminava no corredor principal do Pronto Socorro Central. Tinha descido ao nono círculo do Inferno, mas descobri que dali não passava; descobri que só no fundo do poço encontramos refletida nossa máscara mais última. Que viesse a Bósnia.

P.S.: Ivânia se especializou em pediatria e ainda pôde salvar muitas vidas antes de falecer em um estúpido acidente de carro poucos anos depois destes fatos. Estúpidas são também as mais de 40 mil mortes por ano em acidentes automobilísticos no Brasil. Ela tinha razão, sou mesmo um cara do “depois”, já que só agora, 20 anos passados, é que sou capaz de fazer esta homenagem à luminosa pessoa que foi Ivânia Maria Barbosa Muniz.

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