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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A descendência de Iscariotes (II)



― Irmão, isso, ligue o microfone, venha para o centro do palco e dê seu testemunho! Diga a todos, do fundo do seu coração, de quem você é, de que lado você está agora?

― Apóstolo, irmãos, eu já trilhei o caminho das trevas, eu já andei de braço dado com o Satanás! Minha vida era a pedra: fumar, aliciar, traficar, prostituir eram as minhas ocupações, larguei mulher e filhos, abandonei minha mãe e meus irmãos, troquei a noite pelo dia... só havia escuridão ao meu lado, fui morar na rua, dormia embaixo das marquises, comia restos da comida dos outros, quando comia!, passava o dia andando, mendigando, robotizei, virei zumbi...

― E o chamado, você ouviu o chamado de Cristo irmão? Assim como todos estes irmãos e irmãs aqui reunidos... e vocês, responderam ao chamado de Cristo? Não escutei, mais alto! Mais alto! Graças a Deus, louvado seja o Senhor, por que Ele está aqui conosco!

― Hoje eu vivo em Cristo, hoje sou um soldado de Deus, vivo para a obra da Igreja Mundial... irmãos, eu sou a prova de que as bênçãos são derramadas em nossas vidas, eu vi, eu senti agindo em mim e em minha vida os milagres da Profeta Marieva, e por isso posso testemunhar o poder do Espírito Santo que foi soprado na palavras do Apóstolo Josenaldo!

― Meus irmãos e minhas irmãs, não importa a profundidade do abismo, o que vale é o tamanho da fé! Posso andar pelo vale das sombras, todos podemos andar um dia!, mas, se tivermos fé, estaremos salvos, salvos! Quero ouvir de novo... maravilha, meu povo! Tenham fé, desejem a transformação, pratiquem a oração, peçam, não tenham medo de se abrir, de se despir por inteiro diante de Deus, já que Ele nos conhece por dentro e por fora, desde o fim até o começo... Vamos todos pedir a Cristo, que interceda perante o Pai por nós, que nos mantenha longe do Inimigo e suas legiões. Irmãos, o caminho do pecado é ladeira abaixo, não tem dificuldade alguma para chegar nele... o caminho do Senhor é íngreme, é subida o tempo todo, e vocês sabem por quê? Sabem? Porque virtude é força, e fazer força cansa, lutar cansa, trabalhar cansa, irmãos, sempre é mais fácil se entregar, desistir; estejam sempre atentos e ativos, portanto... Judas, o traidor, não ficou sem descendentes neste mundo cheio de crime e pecado, o exército do Iscariotes está sempre de tocaia para nos tentar. Que maior alegria pode haver do que ter o próprio Cristo nos servindo? Pois Judas, lembrem de João, o Evangelista, capítulo 13, versículo 21, Judas recebeu o pão embebido das mãos do Salvador, e mesmo assim, o Coisa-Ruim entrou nele!

É fácil apagar rastros, difícil é andar sem pisar o chão. Marieva e Josenaldo só queriam apagar um erro, por conta disso acabaram construindo um império sobre ele; uma imensa estrutura tentacular congregando milhares de pessoas em todo país e no exterior. Não tinham mais como parar o que haviam começado. Nem mesmo conseguiam parar de reproduzir, já tinham seis filhos.

Uma coincidência fez com que recaísse sobre Marieva e suas visões uma aura de santidade: houve uma mensagem dela para que o ministério de Juiz de Fora não enviasse um fretado com crentes no Pentecostes; um outro ônibus de linha saindo da cidade no mesmo horário colidiu com uma carreta a caminho de São Paulo causando trinta mortes. O pedido dizia respeito à capacidade de acomodar os fiéis, mas a versão que ficou foi a de que a santinha havia previsto o desastre.

Estes e outros fatos quetais foram responsáveis pelo rápido crescimento do empreendimento religioso; algumas iniciativas de Josenaldo mostraram-se golpes de puro instinto marqueteiro: com um pequeno investimento inicial e duas encomendas em uma fábrica de brindes, as Chaves do Céu e os Pilares do Templo, simples bricabraques de plástico comprados em massa pelo rebanho da I.M.M.D., financiaram a construção de um megatemplo para 50 mil pessoas e a aquisição do grande caça-níqueis da seita ― a fazenda onde se instalou o Retiro do Monte Tabor; local de peregrinação que todo crente deve visitar uma vez por ano e onde até o uso do banheiro é pago e reverte para os cofres da igreja.

Mas o que realmente alçou a Igreja dos Milagres aos píncaros da celebridade foi um acontecimento que dá passo às mais variadas leituras e em cujos desdobramentos o privado e o público se confundem. Onde muitos vêem crise, dificuldade, alguns poucos enxergam oportunidade. O casal de fundadores da I.M.M.D. esperava o sétimo filho, um exame médico apontou problemas sérios no feto; a opinião dos especialistas era unânime: a continuação da gravidez punha em risco mãe e bebê, recomendavam o aborto terapêutico. Desde o começo, o Apóstolo e a Profeta deram plena publicidade ao caso, principalmente à firme decisão de levar adiante a prenhez. Contra tudo e contra todos.

Foram meses de espera e vigília, de orações dos fiéis e prédicas inflamadas de Josenaldo, com os ultrassons da santinha e seu feto sendo projetados em telões nos templos ― a igreja capitalizava o fato como um reality show da fé. O risco, porém, era verdadeiro. Duas horas depois de nascer numa cesariana de urgência, o bebê morreu. Os pais dormiram aquela noite com a criança entre ambos na cama do hospital; quando o dia nasceu, mandaram vir os outros seis filhos e lhes apresentaram a irmã morta. Eles mesmo a batizaram; deram-lhe o nome de Cristina, que significa “ungida com crisma”, pois teve os óleos da devoção em sua alma e bênção em sua boca.

A segunda filha deles, Isabella, nunca mais esqueceria aquele ritual macabro que, no entanto, agradou em cheio aos que seguiam o drama. Bella tinha doze anos.


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