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domingo, 28 de outubro de 2012

A Nuvem e o Sol (II)



            Surpreendente o que pode despertar em nós, e até onde pode nos levar, um método psicológico: após a segunda sessão de hipnose profunda com o Dr. Edson, estava apta a recuar para aquém da angústia do parto e atingir as outras existências carnais da minha alma antiga, vagula et blandula. Inicialmente me decepcionei com a fiada de vidas bestas com que me deparei nesta viagem iniciática às avessas (um calafate melancólico, duas crianças, uma costureira adolescente morta no parto, três soldados), o que deve contar para crédito de expressões batidas como “tédio mortal” ― hoje estou convencida de que as microepifanias do eterno retorno, a chateação universal, se devem a algum resíduo de memória espiritual destas encarnações inúteis.
            Os motivos que me levaram a prestar atenção em Jeannette, uma pobre-diaba que viveu na passagem do século dezessete para o dezoito, não eram claros quando comecei com as regressões. Verdade seja dita, a vida da maioria das pessoas nunca valeu uma cheta, mas não pude deixar de me espantar com o enorme nada que vale a vida das mulheres em geral, em qualquer tempo e lugar. E isto mesmo levando em conta que conheci “pessoalmente” a fina flor da época: Mazarin, Colbert, Saint Simon, Corneille, Racine, La Rochefoucauld, Poussin, Le Brun, Molière, La Fontaine; incluindo algumas das damas mais refinadas que já pisaram a terra, a Duquesa de Orléans, Madame de Scudéry, Ninon de Lenclos, além da inebriante Madame de Sévigné.
            Descrevê-la como uma pessoa comum que conviveu com pessoas de exceção seria banal ― quem sou eu para julgar um percurso humano? ―, muito embora sua história represente uma invariante do lado B da nobreza. O jogo da aristocracia assemelha-se a um sofisticado tapete brilhante nas bordas, mas encardido no centro: de suas finas franjas, feitas de distinções e privilégios, proliferam as mais sórdidas tramas de humilhação, cinismo e bastardia. O pai dela, Visconde de La Motte-Argencourt, seduziu e engravidou uma bonne plebéia, Hortense, criada de um ilustre salão literário parisiense, o que decidiria de um só golpe seu destino. Aos nove anos foi enviada ao Castelo de Maintenon para servir de ama a crianças pouco mais novas que ela; antes de completar vinte e seis anos, foi flagrada pela marquesa no estábulo a fornicar com o estribeiro do palácio; expulsa, voltou a Paris onde se casou com o comerciante de tecidos Lafargue, que lhe fez três filhos e a infelicitou miseravelmente até o fim dos seus dias.
            Numa era em que se faziam fortunas, se corrompiam consciências e arruinavam biografias com lettres de cachet (cartas com o selo real), e nobres de cabeça empoada cavalgavam o lombo dos camponeses, um punhado de mulheres alcançava as mais prestigiosas posições e viviam como aves do paraíso a quem fosse concedida uma restrita capacidade de voar. Bastava um simples gesto do soberano déspota. Neste tabuleiro de intrigas, conspiratas e relações perigosas, porém, o destino da pobre Jeannette não pagava pule de dez. Corrijo-me novamente. O que chamou a minha atenção sobre este peão do jogo alto, foram os dezessete anos de Gata Borralheira nos quais ela serviu a uma outra mulher, que, esta sim, entraria para a História e, de quebra, ainda iluminaria certas partes nebulosas de mim mesma.
            Dentre os quatro elementos básicos, a água e o ar são os mais sutis, mas são as nuvens e a atmosfera que impedem o astro-rei de calcinar este planeta. Françoise D’Aubigné, a Madame de Mainenon, tornou-se o freio moral, a nuvem capaz de ensombrar o reinado do Rei Sol.
            

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