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sábado, 1 de dezembro de 2012

Volver (epílogo)




Se existisse realmente o concerto das nações, a nossa se distinguiria altaneira por uma série de realizações civilizatórias; e entre estas, certamente haveria um lugar de eminência e destaque para a gambiarra. Decerto que a gambi não é exclusividade nossa ― está aí o MacGyver que não me deixa mentir ―, como a jabuticaba e o saci-pererê, e bem pode ser que a maioria dos compatriotas não a considere o elemento definidor, o salientibus punctum, do caráter ― ou da falta dele ― nacional. Sempre que, por falta de tempo, meios, paciência ou vontade, um determinado problema não pode ser resolvido adequadamente, lançamos mão da gambiarra; a gambeta é a invenção parida a fórceps pela necessidade, o estalo que vem a toque-de-caixa na pressão do momento, tanto é assim, que a crônica de empreendimentos complexos como as arriscadas navegações da era moderna e a conquista do espaço, é rica em exemplos da capacidade de improviso daqueles avisados desbravadores. Este admirável vocábulo, de obscura origem celta, que a principio designava simplesmente a extensão elétrica irregular, universalizou-se a tal ponto entre nós, que passou a conotar nosso arraigado hábito de cambiar o comme il faut pelo quebra-galho ad hoc. A solução meia-boca de dificuldades emergenciais é tanto testemunho de solércia quanto de indolência; um desavergonhado tributo que o direito paga ao torto, pois que a gambiarra absolutiza o particular, celebra a apoteose do provisório, torna definitivo o precário, o interino, entronizando cinicamente o truque, o remendo, a tamancada, o tapa-buraco, o funcionamento à meia-bomba e o colado com cuspe, em detrimento das atitudes e expedientes escorreitos. Os nascidos sob esta estrela transitiva soem amalgamar criatividade e acomodação, inclinando-se a tolerar graus mais elevados de impermanência, esculhambo e deboche; a ética do “dar um tapa”, a práxis do “dar uma garibada”, desembocam naturalmente no “deixa estar para ver com é que fica”. Viver sob a égide da gambiarra é enganadoramente cômodo, fluido, afetuoso, desconcertantemente cordial; pode-se afirmar, sem exagero ou falsidade, que ninguém transforma o capricho em norma por acaso, sina, ou destino manifesto ― é sempre uma questão de escolha, inconsciente ou não. Porque nem sempre o “jeitinho” ajeita, mas a gente faz que.
Pois foi na base da gambiarra que tudo se arranjou. Afinal, Estelamaris era uma mulher completa em seu pragmatismo, raciocinava com todos os órgãos vitais: cabeça, coração e sexo. Não necessariamente nesta ordem.
Aureliano não tinha mesmo para onde ir; estava sem um gato pra puxar pelo rabo, os poucos parentes que lhe restaram moravam no interior, e ainda havia toda a série de trâmites legais da nossa nunca assaz louvada burocracia: provas de vida, anulação de óbito, exames, certidões mil, exumação do corpo, translado para Curitiba, etc., etc. Instalaram-no na edícula do sobrado e a vida seguiu. Estelamaris, essa, andava feliz como um pinto no lixo: recuperou seu sócio na administração da mercearia, o pai dos filhos dela voltou a pôr ordem na casa... e ainda tinha o Ascânio. Cada vez mais esquecido por todos e sem função, o pobre circulava pela casa transparente como um morto insepulto. Ou melhor, quase sem função, porque pra trepar ele servia muito bem. Ô se não...
Ninguém sabe dizer como foi que aconteceu, simplesmente se deu, e depois era como se sempre houvesse sido assim. Ascânio mudou-se para a edícula, e Aureliano foi dormir no sofá da sala; por pouco tempo, já que logo reassumiu seu antigo lugar na cama do casal. Estelamaris até se esforçava para ser politicamente correta, mas a consistência da carne e o aspecto do primeiro marido lhe davam engulho ao transar com ele. Fazia por obrigação, a bem dizer. Nestes particulares, gostava mesmo era do impiastro do Ascânio; parecia que quanto mais inútil ele se tornava, melhor ficava a foda. Não perdoavam feriado nem dia santo, quando lhes dava na veneta, iam lá pro quartinho e sentavam a ripa: berravam, bufavam, punham-se a ganiçar, a cama estreita rechinando feito égua barranqueira; e ainda por cima, Estelamaris só gozava disparando um chorrilho dos piores palavrões.
Aureliano ficava pior que estragado nesses dias, cara de cão chupando manga. A mãe dela logo veio pôr cobro na fuzarca.
― Tetela, minha filha, assim não pode ser; tu morar com dois homens, isso é vida? Olhe que o povo comenta, fala coisas...
― Deixa falar, mãe. Sentar em cima do rabo pra falar do rabo alheio é o esporte mundial do zé-povinho, agora, me fazer um supermercado ninguém quer... todo mundo vê as pingas que eu tomo, mas ninguém vê os tombos que eu levo; ou ao contrário, sei lá, nunca sei qual é o vice e qual é o versa dessa frase... Quero que se lasque, a língua desse povo é mais comprida que a avenida Sapopemba, mas pagar minhas contas ninguém quer, né?, os meus boletos tão sempre lá, chegam todo mês... não tem isso não, mãe, comigo não tem coré-coré: eu que pago os músicos, eu que escolho a música. Na minha casa mando eu!
Não teve jeito, assim como estava, ficou.
Domingão de tarde, Estelamaris foi tirar um “cochilo” no quartinho do Ascânio. Em breve a casa se enchia daquele caramunho que tanto deprimia Aureliano. A filha trancou-se no quarto dela pondo o som no máximo; o filho, sentado nos degraus da escada da frente, cortava as unhas. Aureliano acompanhava a operação com interesse, ficou satisfeito com o resultado.


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