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sábado, 5 de janeiro de 2013

O seqüestro do Tunico (final)


            ― Moreira, você tem um tempinho agora? Tenho umas perguntas pra te fazer ― Runa sentia-se bem melhor, chefes e estupradores só faziam aumentar sua azia existencial.
            ― Tenho sim, e é bom porque nós tamo precisando atualizar o blog, também tenho um par de coisas pra perguntar. Vamo aqui perto... humm, no Campo Belo, tenho um QRA com o dono de um Pizza Grill da hora. No meu?...
            ― Claro, não vou perder a chance de andar num cabine dupla...
            ― Maria-gasolina!
            ― Quê? De poizé já basta a minha lata-velha, bem que tô merecendo um dia de princesa hoje...
            No caminho para o restaurante Moreira deu a fita: o comedouro pertencia a um antigo ‘ganso’ seu que enricou e cansou da vida bandida; durante a semana servia um bufê de almoço razoável, mas, para ele, havia sempre menu à la carte e um reservado especial. E o melhor de tudo, na vasca. Foram recebidos pelo dono na porta e encaminhados para uma mesa nos fundos de costas para um pequeno jardim de inverno. Runa mudou de lugar, sentando-se do lado direito de Moreira.
            ― Perfeito. Gostei, era exatamente o que esperava de você.
            ― Como assim? O que é que você estava esperando de mim, Moreira?
            ― Tudo. Sentada à minha esquerda, você perdia um bom pedaço de ângulo do salão, e por isso mudou instintivamente de lugar. Três perguntas: a senhora sentada na primeira mesa logo à entrada, qual a cor do vestido dela?; segunda, quantas saídas tem o boteco?; terceira, responda sem olhar, quantas pessoas você calcula que estão aqui dentro neste momento?
            ― Não estou entendendo... a senhora estava de vestido azul, não, era verde, um verde piscina; há três saídas: a porta principal, a da cozinha e uma lateral, provavelmente para os fornecedores; chuto umas quinze pessoas... mas por que?...
            ― Por quê? Ora, por nada, Franklin, absolutamente nada. Todos esses detalhes que você notou não servem pra picas neste momento... mas podem vir a ser úteis, numa emergência. Na maior parte das vezes são observações inúteis, mas é assim que são os verdadeiros tiras: têm esse olhar vagante pras coisas que não estão na frente do nariz. Esta é a marca do esbirro à vera, não a do cão raivoso; um polícia que mereça esse nome não engole mosca, nunca baixa a guarda, nunca fica de bobeira no lance. Eu notei essa qualidade fundamental desde a primeira vez que botei os olhos em você. Outra coisa: contando o pessoal da faxina, temos aqui dentro treze viventes; o resto, ou é comida, ou rato, ou barata.
            ― Hahaha, maravilha pra abrir o apetite! Você é mesmo uma figuraça, cara, quando crescer quero ser igual a você.
            ― Pois é aí que mora o problema, deste jeito, você não vai, não... nem vai crescer, e, talvez, nem consiga envelhecer na profissão...
            ― Quelamerda, não me diga que vou tomar o segundo esporro do dia...
            ― Se você entender assim, que eu posso fazer? O busílis é o seguinte, percebi que você tá cheia até no tampo de um sentimento equivocado: a indignação. A indignação faz o bom cidadão e o mau, o péssimo, policial; as duas coisas não existem juntas, você vai ter que escolher, minha filha. Um beleguim indignado fica cego, perde o faro, e começa a querer pagar de juiz; vira palmatória da sociedade, que é tudo que ele não pode, não deve, ser. Embora também seja verdade que, ao perder qualquer resquício de indignação, o camarada fica também sem todos os seus freios morais; daí pro bandido de insígnia é um pulinho de nada... Sou um cara que lê bastante, muitos polícias são assim, leio principalmente sobre história; e o que aprendi com isso?, aprendi que a história é a ciência do sofrimento humano, aprendi que não há como sair fora da história, nem da sua, nem da dos outros. Sabe?, às vezes me passa um arrepio quando pego uma dessas bestas-feras como aquele estuprador lá do pau-de-arara... tu precisava ver o DVC do vagabundo, uma capivara enorme, praticamente foi criado pela FEBEM... Não consigo evitar um pensamento terrível: que aquilo é o barro de que todos nós somos feitos, aquilo é o Homo sapiens, o macaco que desceu das árvores, ou saiu das cavernas, sei lá; o que a gente chama de ser humano é na verdade o esforço que fazemos pra deixar de ser assim, um esforço insano, antinatural, uma trabalheira do caralho, e sempre pronta a regredir... parece que nós nunca terminamos, nem nunca vamos terminar, de nos tornar... humanos! Você me entende?
            ― Então você não acredita mais na justiça?
            ― Justiça, ora, justiça de cu é rola! A polícia existe porque o mundo é o que é, e não o que deveria ser. Esquece a Justiça, o que se faz, na melhor das hipóteses, é a justiça possível; justiça com maiúscula só há nos ofícios, nos tribunais, vai lá nos fóruns ver o elevador exclusivo dos desembargadores, quando eles entram, desce todo mundo; pra esses daí, o J é bem grandão, te garanto! Quantas vezes a gente não vai lá e prende a menina e o namorado que mataram o padrasto dela; os dois são presos e condenados: justiça foi feita? Claro que não. E esse padrasto que bolinou a garota durante anos?, e essa mãe olho-de-vidro que se fingia de morta pro filho de uma quenga não picar a mula? A esmagadora maioria dos crimes não são alcançados pelo braço da lei; o fulano foi pego roubando três milhões?, pode crer que foram mais de trinta; o matador confessou uma morte?, pois foram seguramente dez, e assim vai... Não teve esse governador e prefeito que roubou durante décadas esta cidade?, foi pego, e ainda assim lá fora, por uma (umazinha só!) das obras superfaturadas que fez a vida inteira; pegaram uma transferência esquisita de Nova Iorque pra Suíça só porque os americanos tavam apertando as correrias dos terroristas; te pergunto: fez-se justiça, ou foi um acaso? Parece piada: o salafra vai ter de pagar dez por cento de multa do que roubou, dez por cento! Eu invejo mesmo são os lixeiros, desses que limpam fossas; não, não ria não, eles revolvem o mesmo lodo que nós, só que o nosso esgoto não se limpa nunca, no máximo a gente dá um tapa bem por alto. Somos as diaristas de luxo dessa sociedade de merda; nós, homens da lei, não podemos ter muita estima pelo mundo, não. Você precisa entender que o Abelha tem uma certa razão: não usamos os mesmos métodos no barraco da favela e no palacete dos bacanas; granfo tu só interroga na presença de advogado caro, e não tem pressão nem esculacho, é tudo no sapatinho. Quanto mais rápido você aceitar isso...
            ― Falando em grã-fino, descobri umas coisinhas lá no Mares do Sul. Vou precisar dos teus contatos...
            ― Manda, abre o saco Judas.
            ― A parada lá no cafofo dos endinheirados é nervosa: uma moradora me passou um DVD que tá circulando entre os condôminos: um vídeo gravado pela empresa que presta segurança mostrando o síndico exigindo a primeira parcela do contrato na conta dele, mais dez purça do valor mensal. Daí que veio o seqüestro do totó da mulher dele... acho que era só pra dar um apavoro, mas não deve ter funcionado muito.
            ― Hmm, empresa de segurança... de quem é?
            ― Então, aí que a porca torce o rabo: chama-se Serv Segur, dei uma pesquisada e descobri que é do doutor Inojosa; aquele, da Seccional...
            ― Puta merda! Então a briga é de cachorro grande, o Inojosa manda e desmanda lá no DECAP... Tudo bem, vou dar uma palavrinha com ele. Afinal, tá devendo uma: quase racharam o coco de uma policial minha na brincadeira. Fica fria que tu vai fazer o cartaz lá com a gostosona, quer dizer, se a esta hora o lulu ainda não virou sabão...
            Dois dias depois, caso encerrado; o valente Tunico foi devolvido num terreno baldio, quem era branco se entendeu, quem podia mandar, mandou, e quem foi esperto obedeceu. Tudo acabou bem, ou quase: Tunico voltou com um quilo a menos, cheio de pulgas e ainda teve o rabo amputado pelos meliantes que o seqüestraram. Maldade gratuita, relatou a detetive ao superior conversando pelo celular; novamente o Moreira lhe esclareceu a linguagem dos sinais: “Coisa de mafioso, a mensagem vem escrita na vítima; tá dizendo que devolvem o que foi subtraído, mas acabou o arrego”. Putz grilo, sempre aprendendo. “Moreira, o síndico é podre de rico, mora numa cobertura dúplex de cinema, dono de construtora e o carai, pra quê roubar até nisso?”; um suspiro do outro lado, então, a resposta: “um-cinco-sete é sempre um-cinco-sete, rouba por sistema, por vício; se fosse a necessidade a fazer o ladrão, era melhor murar e gradear as favelas logo de uma vez; e tu sabe que não é isso, tá no sangue”.
            Runa Franklin pegou seu pau-velho no estacionamento da delegacia às seis da tarde para encarar o trânsito infernal da zona sul. Ia direto pra casa, em Santo Amaro; sentia-se quase feliz, nem a perspectiva do congestionamento a incomodava muito. Abriu a janela do carro sem ar condicionado e pôde aspirar a fedentina que emanava do Pinheiros; lembrou do esgoto que não se podia limpar de que falara o Moreira, lembrou do Tunico, aleijado, pobrezinho ― talvez o único completo inocente da história. Nesta vida ninguém está a salvo das lambadas, até quem nasce em berço de ouro.

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