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quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Prainha (II)



Sempre há mais coisas para esquecer do que para lembrar na Prainha. Por vezes, despertamos estranhamente repousados, um descanso tão fundo que até parece cansaço; o corpo pesado como pesa no sono. É muito inquietante esta desídia, minha e dos meus patrícios, simplesmente deixamos pra lá; ninguém liga muito pra nada que não seja subsistência ou diversão, um desleixo misterioso: sem que tenha havido debate nem combinação, todos deslembram, tudo aqui se dissolve em chacota, festa, oblívio. Tal e qual as marés e as estações do ano, uma mudança contínua voltando continuamente ao mesmo ponto. Abandonamos as roupas, vestimos o próprio corpo até que a vida o (e nos) abandona. Sobrevivemos apenas, do mesmo modo distraído como sobrevivem os esgotados. Vivemos como sonhamos: sós; carregando uma nostalgia torpe de passados e futuros, como a areia que o mar leva e traz, balanceando o pesadume das coisas imutáveis com o apagamento dos sonhos desvanecidos ao amanhecer.
Um exemplo notável: não lembro meu nome. Nenhum outro adulto da comunidade lembra. Na verdade, ninguém chega a portar um nome definitivo; quando muito, um ou mais apelidos nos são pespegados na infância, refletindo alguma mania ou habilidade, uma deformidade física qualquer, que serve provisoriamente de característica definidora ― mas é sempre uma denominação que vai da parte para o todo, carecendo da força mágica, da fantasmagórica irrupção do nome próprio. Igual aos peixes, insetos, aves, bichos e plantas, nossa onomástica designa pela família e parte pelo gênero: homem-fêmea e homem-macho. À nossa residência comum damos o nome de Casa dos Homens.
Há duas formas de habitação: no sopé da montanha, ou nas proximidades do mar; as primeiras, feitas por nós, são bastante simples, construídas com vigas de cedro encavilhado no bambu que faz de parede, e cobertas com palha de coqueiro amarrada por fibra de sisal ou agave. Estas são as casas dos anciãos, os que já não podem contribuir com trabalho para o grupo. Aquela que chamamos de Casa dos Homens não pode ter sido feita pelo nosso povo, pelo menos não com a tecnologia de que dispomos atualmente. Fica numa clareira próxima da praia: um galpão de pé direito alto e sem janelas; as paredes, maciças, são de alvenaria; o teto, com travejamento de aço inoxidável, está coberto com chapas de zinco que são remendadas na estação seca.
Possuímos pouca ou nenhuma divisão social; ignora-se a organização familial e a propriedade com a mesma displicência com que se abandonou o registro histórico e a busca do conhecimento. Uma vez que não há casais fixos ― todos fazem sexo entre si livremente ―, os filhos são de todos e de cada um; não se toleram descuidos ou maus tratos para com os curumins. As mães cuidam das crias por sete anos, aproximadamente, recebendo da comunidade uma isenção de tarefas semelhante àquela dispensada aos idosos. A passagem para a idade adulta acontece naturalmente, via de regra, quando a criança ganha um apelido; o aparecimento do nome sinaliza o desmame da fantasia, avisando que a metamorfose se completou: onde antes havia um rei ou uma rainha, deveio o sujeito-homem.
A única polêmica que ainda consegue separar dois praianos em campos diametralmente opostos numa discussão é ociosa: chegamos ao zênite da civilização possível, ou, ao contrário, estamos nos aproximando insensivelmente da barbárie? Digo que a questão é ociosa porque, qualquer que seja o ponto de vista assumido, não leva a nenhum câmbio da atitude prática, individual ou coletiva. De há muito notei que ninguém entra e ninguém sai daqui, nunca ― e sobre este assunto não há quem discuta, sequer mencione. Alguns solstícios atrás, tentei fugir desta prisão abençoada por um clima ameno e dourada eternamente pelo sol. Temendo as fortes correntes marinhas para além da barreira dos recifes, escolhi a rota da montanha.
Peguei um facão e uma lança, acomodei no alforje algumas postas de peixe seco, goiabas, jambos, frutas-do-conde, araçás e tâmaras; armei-me de toda a coragem de que dispunha depois de fumar um pango e mandar pra dentro duas boas talagadas de cachaça. O dia raiara há pouco; queria aproveitar o máximo de luz na jornada, porém, na mata fechada, reinavam a sombra e a umidade. O noitibó e o juriti cantavam ainda seu aboio tristonho, mas já se podia ouvir o charivari dos bandos de tuins acordando ao norte da trilha e o fuzuê dos quero-queros na praia. Segui bem por umas três horas na subida de cabra da encosta norte, até perto do topo o caminho é batido e tem poucas pedras; podia ver rastros de capivara e sentia a presença dos sagüis e macacos-prego a me vigiar das copas das árvores.
As cigarras interromperam seu chiado enlouquecido, o calor começava a abafar; nenhuma brisa agitava as ramas e arbustos, a natureza emudecera. Conhecia o significado daquele silêncio súbito da floresta: predador nas redondezas. Minhas narinas se dilatavam procurando absorver todos os cheiros do entorno; havia chegado ao limite máximo que as pintadas e suçuaranas respeitavam nas suas incursões. Lembrei do ditado, tantas vezes repetido entre nós: “Quando você vê a onça, ela já estava te vendo há muito tempo”. Arquejando, encostei no tronco de um jequitibá gigantesco; um galho de pau-jacaré vergou lentamente, uma bromélia despencou do alto; a luz do céu, coada pela mata densa, entretecia azuis e verdes. Sentia o cheiro azedo do suor frio a me banhar ― era o budum do cagaço ―, imaginei que estava sendo seguido, mas nada se passava, nada se via.

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