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sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Afterlights (1)




            Precisavam justamente de alguém com disponibilidade para trabalhar em “horários flexíveis”, e foi assim que emprestei a soldo minha absoluta falta do que fazer à empresa Afterlights. Disponibilidade é meu nome, sobrenome desocupado. Talvez na época eu tenha estranhado a contratação mega express ultra rápida (a entrevista com o dono da firma durou uns 15 minutos), mas devo ter-me convenientemente convencido que é assim que a banda toca no universo em desencanto das start ups: dinamismo, alta competitividade e zero conversa mole. Além do mais, os caras me registraram, e, nestes tempos golpistas e bicudos, “resistro” em carteira tá mais difícil de achar do que nota de 100. Abracei com as quatro patas.
            ― Estou vendo aqui no seu currículo que você é escritor, tá ciente da nossa cláusula de confidencialidade? A natureza específica do seu trabalho conosco é absolutamente sigilosa, não vai poder aparecer em futuro algum, nem em prosa nem em verso.
― Oh, não se preocupe com isso, talvez a melhor maneira de guardar um segredo seja dentro de um livro meu. Pro senhor fazer uma idéia, a minha mãe não foi no lançamento da coletânea de contos que publiquei no ano passado.
― Não me chame de senhor, sou mais novo que você. Espero que, a esta altura, já tenha estudado nossos propósitos, valores e missão no site, e esteja claro como é que o app funciona.
― Bom, li sim, mas admito que ainda restam algumas pequenas dúvidas do tipo: então eu fico cadastrado no aplicativo, foto de corpo inteiro, bio, links pra redes sociais, e, por sua vez, os clientes do portfólio escolhem pelas características, e tal, quer dizer, não vejo muito como eu poderia dar match com os usuários de vocês...
― Hehehe, nossos clientes têm os mais variados gostos, quanto a isto fica sussa, vai ter demanda. Lhe garanto. O salário é como no anúncio, você recebe um fixo mínimo e ganha comissão a partir de 10 clientes por semana. O mais importante é que você se familiarize o mais rápido possível com os equipamentos.
            Tudo conspirava para que me atirasse de cabeça na buena onda, aparentemente as minhas qualificações, ou a falta delas, faziam de mim o candidato ideal ao posto na Afterlights, pelo menos era o que garantia o CEO do boteco. Tinha acabado de reiniciar pela trocentésima vez meu segundo romance inacabado, impublicável e invendável como o primeiro, ou seja, dispunha de tempo, falta de dinheiro e vontade de ficar o mais longe possível da opressora página branca. Infelizmente para mim para o mundo, não era o famigerado bloqueio criativo a me paralisar, mas a autoestima que andava abaixo de cu de cobra: por um desses lapsos que Freud explica com um risinho no canto da boca, meu editor me respondeu um e-mail copiado com a avaliação dos originais pelo conselheiro editorial da casa. O camarada torou meu manuscrito sem dó, apanhei mais que pobre na mão da polícia.

Boa descrição, diálogos apresentáveis. Alguns momentos divertidos, outros delicados. Em resumo, um romance de palavras bem escolhidas. A estória, porém, é um saco. As primeiras 30 páginas se arrastam como uma lesma em slow motion, repletas de exposição, o resto não chega a seus pés. A trama principal, ou o que há dela, é recheada de coincidências convenientes e motivação fraca. O protagonista é homem, branco, heteronormativo, cisgênero e bidimensional, praticamente desprovido de interesse ou conflitos relevantes, tropica ao longo da narrativa embrulhado numa grossa camada de tédio – o que não impede de lhe acontecerem as coisas mais insólitas e de conhecer misteriosas personagens. Tensões não relacionadas que poderiam transformar-se em subtramas nunca chegam lá. Personagens nunca revelam ser algo mais do que parecem, a tantas horas, um providencial terremoto (!) livra o autor de resolver a maioria deles. Nenhum panorama momentâneo da vida interior dessas pessoas ou de sua sociedade. Freqüentes pseudodiscussões filosóficas regadas a erudição alheia truncam a fluidez do texto. É uma coleção sem vida de episódios previsíveis, mal contados e clichês que caminham a passo de bêbado para uma confusão sem sentido. PASSE ADIANTE.


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