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sábado, 11 de fevereiro de 2012

Ágaton, ou do amor à Sabedoria (parte beta)


Saíram cedo. A viagem até à Beócia era relativamente curta, poucos eram os cânions e desfiladeiros do caminho, mas precisavam aproveitar a luz do dia porque as estradas andavam infestadas de perigosos salteadores. O grupo incluía três homens e duas mulas; o prebusteroi (professor) Ágaton e o aluno (neaniskoi) Afrodísio seguiam montados, escoltados por um escravo armado e a pé. Ágaton não podia deixar de refletir sobre a condição do servo que os atendia ― estranhas são as forças que fazem um sujeito (hypokeimenon) forte e armado curvar-se voluntariamente a dois intelectuais que ele não teria dificuldade alguma em eliminar!
Chegaram com sol declinante a Lavadeia, importante cidade beócia onde os aguardava Irineu, o demagogo. Após serem banhados pelos escravos do anfitrião, foi-lhes servido o lauto banquete que abria a conferência pública. No terraço, sombreado pela cerca viva de uma pérgola recamada de hera e vinha, reunia-se a platéia de apenas nove cidadãos; delicadas viandas, assados, vinhos e licores eram servidos em abundância aos convidados reclinados nas espreguiçadeiras. Irineu pediu silêncio tomando a palavra:
― Senhoras e senhores, ou melhor dizendo, andres Boitikoi (homens da Beócia), como sabeis, estamos às vésperas de um plebiscito para escolher a forma de governo que adotaremos de ora em diante: disputam nosso sufrágio a tirania (governo de um só), a aristocracia (governo dos melhores) e a democracia (governo do povo). O ilustre filósofo ateniense Ágaton, cuja fama o precede, aqui está para nos mostrar como a prudência (phrônesis) deve guiar a ação correta (spondata práxis).
― Amigos, não ficarei com tertúlias flébeis para acalentar bovinos (conversa mole para boi dormir, em greco-aramaico); dado o número reduzido em que nos encontramos, proponho transformar minha palestra em diálogo ― e Ágaton afastou de si o pergaminho de anotações do seu discurso. ― De mais a mais, quem pretende defender as virtudes do governo da maioria, melhor fará se não vos tratar como leigos (idiôtai), mas como legítimos interlocutores e adotar o modo dialético.
― Disseste-o com muita propriedade, ó Ágaton, e eu, Hiparco, cidadão beócio, gostaria de começar fazendo um reparo: é verdade que o tirano foge das eleições como o diabo da cruz; certo é também que, na aristocracia, as votações tendem a se tornar meros referendos dos interesses das classes dominantes; porém, acreditas tu que a democracia seja a panacéia universal da política? Acaso os governantes democraticamente alçados ao poder mostram-se mais prudentes que os tiranos, ou menos defensores das elites que os nobres? Os ditos representantes do povo (demagogos), não seriam antes servos dos altos interesses, dito de outra forma, não seria a democracia na verdade uma plutocracia (governo dos ricos)?
― Amigos ― interveio Afrodísio ―, dentre todos os tipos de governança, o que distingue a democracia é a capacidade de fazer escolhas, não a qualidade delas. O motivo pelo qual continuamos a jogar os dados, a depositar os votos e apostar nas novas forças que surgem na pólis, é justamente manter esta roda girando. Só quando as multidões são convocadas é que o sistema tenderá para a renovação, mais do que qualquer outra forma de organização social, a democracia tem o poder de absorver as formas do novo.
― Eloqüente Afrodísio, caros colegas, tal como os deuses do Olimpo deixaram a Discórdia se instalar na eleição da mais bela deusa, os homens temem o Pomo de Ouro da decisão, toda escolha traz em si o impensável, o não previsto, a divisão de opiniões (dogmata). Por isso, nós gregos, utilizamos o conceito de tyké, palavra que carrega os sentidos de sorte, azar e acaso; sabemos que, em maior ou menor grau, o juízo (epokhê) que antecede a ação é formado em meio às brumas das paixões e do arbítrio. Tal e tanta é a nossa responsabilidade ― assim falou o arconte Midomeneu, comovendo os circunstantes com suas palavras doces e modos decididos.
― O discurso de Midomeneu conjura tamanho enxame de idéias em meu pensamento!... ― Ágaton se levantara para falar e agora caminhava por entre os divãs dos ouvintes. ― Se Éris (a Discórdia) obteve sucesso em dividir os olímpicos foi porque os desviou do Bom para o Belo, trocou a essência pelo fenômeno, elevando a bem supremo (ariston agathon) as aparências em lugar da virtude. Chegará, talvez, o dia em que o grito de Pan silenciará nas florestas, e as pessoas não mais buscarão o conselho dos filósofos, mas, se algum préstimo houver neles e em suas metáforas, cidadãos beócios, será o de lembrar que a todo encontro falta sempre a deusa ausente da Verdade (Alethéia). O filósofo ama a Sabedoria (Sophia) por ter ido além do egoísmo (philautía), pois toda a filosofia é um poema de amor à humanidade, já que pressupõe em todos a capacidade de se fazer as grandes perguntas (e de assumir o colossal abismo da ignorância). Lembrai daquele angustiante momento em que toda a criança se depara com o infinito e pensai como cada um de nós já teve de emprestar, do seu próprio corpo, o ser da palavra ser. A filosofia é uma medicina da alma, não por curar a melancolia essencial da existência, mas por ser uma verdadeira filantropia. Um sincero e utópico projeto de amor ao próximo.
A um gesto do dono da casa, irrompeu pelo terraço uma trupe de acrobatas. O torso nu dos atléticos kourós (adolescentes) em arriscadas piruetas e volteios, os óleos perfumados a ressumar daqueles corpos jovens, somados às profundas elocubrações do ateniense, causaram a mais vívida excitação na assembléia.

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