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sábado, 17 de julho de 2010

O Jogo da Gata-Parida

Mesmo com a razoável habilidade para desenhar que sempre tive, não consegui acrescentar nada à descrição que consta no boletim de ocorrência: branco, altura média, olhos e cabelos castanhos, nenhum sinal característico. Mais inexplicável é o que aconteceu com o rosto desse sujeito que ficou quase uma hora comigo: por mais que me esforce, não lembro de nenhum traço, ao mesmo tempo em que não consigo esquecê-lo. Sonho com uma face sem marcas, a testa normal, sem sobrancelhas grossas demais, nem um nariz torto, ou um queixo menor do que deveria; freqüentemente me aparece uma máscara de olhos vazados como nos filmes do homem invisível ― e acordo molhado de suor frio, o coração alvoroçado, ainda ouvindo aquela voz que também não me sai da cabeça.

Passados seis meses, meus agressores ainda me visitam todas as noites. É um mistério, um quebra-cabeças que não atinjo resolver ― não lembrar e também não conseguir esquecer. Vá entender essas coisas.

Fazia dois anos que o meu nome integrava a lista de profissionais fixos da Dental Care, clínica de clareamento dentário para chiques, abonados e famosos. A clientela VIP, as constantes aparições na mídia, as diversas unidades franqueadas, o instituto beneficente para crianças que os sócios divulgam no país todo, enfim, tudo isso fez e faz da DC a meca dos odonto-cosmetologistas. De fato, há um tanto de maldade e outro tanto de verdade nessa denominação, os produtos clareadores corroem essa camada mais externa que é o esmalte; quer dizer, procuro não pensar que estou prejudicando a saúde futura da dentição dos meus clientes, mas que os estou ajudando na questão da imagem e da baixa auto-estima. Além do quê, dei um duro danado para fazer parte de uma estrutura sólida e altamente profissional ― e isso ninguém diz.

Sexta pré-feriado, final de tarde, dispensamos as secretárias mais cedo porque havia um congestionamento-monstro na cidade devido ao Tiradentes que caía na segunda. Só restavam três profissionais e um cliente na clínica; eu mesmo já não estava atendendo e fazia uns telefonemas de acerto de agenda para a semana seguinte. A minha colega me chamou pelo ramal interno à sala dela, achei que ela ia me consultar sobre alguma retração gengival no cliente que estava em atendimento ou algo assim; não podia estar mais distraído quando entrei no conjugado vizinho e dei de cara com dois sujeitos de pé, um deles me apontou imediatamente a arma e anunciou o assalto, enquanto o outro remexia as gavetas e a minha colega, completamente aparvalhada, jazia sentada na própria cadeira de trabalho.

Resumindo: eram quatro bandidos, enquanto três deles saíram com as minhas duas colegas no carro insulfilmado de uma delas para sacar dinheiro em caixas eletrônicos, o outro ficou lá comigo.

Até aí me sentia seguro, os caras demonstraram muita segurança e não pareciam drogados nem tensos. Conheciam detalhes do funcionamento da clínica, tanto que sabiam que uma das meninas era também administradora e estava com o cartão da empresa; entregamos todo o dinheiro que havia em caixa e eles ainda embalaram alguns antibióticos, materiais e aparelhos que tinham valor de mercado. Quadrilha especializada, disse a polícia. Um deles se passou por cliente, fez orçamento e marcou o último horário de sexta. Comunicavam-se por rádio, eu fiquei como garantia de que elas não iam tentar nenhuma besteira; qualquer erro, eu pagaria com a vida. As regras estavam postas.

O “meu” bandido me levou para a sala de reuniões, era lá que a equipe se reunia e onde também eram filmadas as eventuais entrevistas; havia ali uma tela, data show, mesa ampla para cursos e palestras, estantes de madeira clara e fotos em preto e branco enquadradas nas paredes. Nunca mais voltei a entrar nesta sala. Para matar o tempo, o sujeito começou a brincar comigo: largou a arma numa das cadeiras anatômicas, girando o assento para fora da mesa. ― É tipo uma dança das cadeiras... ― disse, com aquela cara de nada.

― Um joguinho pra passar o tempo, doutor, presta atenção, ele tem três partes: a primeira parte se chama “jogo da gata-parida”. Como o senhor deve saber, as gatas prenhas precisam de um lugar seguro quando vão parir, elas buscam uma toca onde a ninhada fica escondida, precisam do melhor assento... como nós dois aqui... Doutor, doutor, o senhor não está me ouvindo...

Ele tinha razão, não conseguia tirar os olhos da arma sobre a poltrona giratória. Foi até lá, destravou a pistola e voltou a se afastar.

― Esta é uma ponto-três-oito-zero, automática, assim como deixei ela, é só pegar e apertar o gatilho, não tem erro: o senhor só precisa ser mais ligeiro que eu... ― afastou-se ainda mais e ficou numa das pontas da mesa me encarando. ― Mas vou ser justo e lhe avisar que nunca perdi neste jogo. Aqui, dentro do seu consultório, sou eu que tô na desvantagem da gata, não acha?...

Dei uma olhada para a minha barriga, tenho trinta e quatro anos, pratico tênis desde os dez; é verdade que uma barriguinha começa a despontar na minha silhueta, mas o fato é que me encontrava bem mais próximo da arma do que ele. Ninguém conseguiria ser tão rápido; avaliei que dava tempo de chegar à cadeira, empunhar o trabuco e dominar a situação. Dei um salto e catei a arma, que tremia na minha mão. Ele nem se mexeu. Não fiz exército, nunca tinha pegado uma arma de fogo de verdade na mão.

― Muito bem. Agora vem a segunda parte do jogo, chama-se “rato-ou-leão”; doutor, não adianta ter o poder, é preciso estar pronto pra usar... agora vamos saber o que senhor é... ― começou a caminhar, bem devagar, na minha direção.

― Pára aí, não quero atirar! ― me espantei ao me ouvir berrando. Não queria mesmo disparar, mas ele continuava a vir na minha direção, com ar de sonso. Mirei nas pernas: ― Click-click-click! ― Descarregada! O resto da cena passou-se numa velocidade inacreditável.

― Então é leão, né, seu rosca? Sabe o que me incomoda em gente que nem você? É que vocês não ouvem quando a gente fala, te disse que nunca perdi essa parada e não adiantou nada, né? Você nem quis saber como é se chamava a última parte do jogo, sabe como chama? Sabe ou não? ― ele me pegou pela gola da camisa junto com um tufo de cabelos, empurrou minha cabeça na mesa e encostou o cano de outra arma na minha têmpora enquanto berrava na minha orelha.

― Não, não sei... pelo amor de Deus, não atira!...

― Chama “tenho cara de otário, tenho”? Escuta aqui, acha que eu ia dar esse mole prum coxinha como você? Só você é que é esperto, é? Se as tuas amigas der vacilo, te queimo seu filha da puta!... morou?, entendeu agora quem está no comando aqui?

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